A novela da Ciclovia da Almirante Reis, em Lisboa, merece ser seguida do ponto de vista da ciência política e do que representa para a condição actual do sistema democrático português. Temos aqui, com efeito, um exemplo das campanhas eleitorais em que se promete tudo a todos, procurando federar descontentamentos com vista a benefícios eleitorais de curto prazo. Na ânsia de se conseguir um resultado vai-se bater a todas as portas, recolhe-se num saco todos os descontentes, todas as necessidades pessoais de afirmação pública, todas as guerras e guerrilhas de décadas de governação da cidade de Lisboa e, zás, temos um embrulho para apresentar ao eleitorado e colher benefícios políticos.

Com este embrulho populista, em que se diz que “sim” a tudo sem medir consequências, contradições, sustentação financeira (“quanto custa?”) nem impossibilidades legais (“há compromissos que estão a ser violados?”) fazemos um saco de gatos inconciliáveis de mau temperamento que apresentamos ao eleitorado e com o qual conseguimos uma vitória tangencial.

Moedas podia não esperar ganhar as eleições porque acreditou – como a maioria – em todas as sondagens que foi lendo ao longo da campanha e onde surgia sempre como perdedor, por isso, e sendo um homem muito inteligente, sabia que era impossível dizer que sim a toda a gente e, simultaneamente, executar tudo o que estava a prometer mas, apesar disso, prometeu tudo a todos. Prometeu erguer uma #Moedotopia em que se dava tudo a todos, em que se criavam lugares de estacionamento e simultaneamente se suprimiam, prometeu fazer ciclovias e acabar com elas ao mesmo tempo, prometeu o céu e a terra e a transformar o chumbo em ouro.

Mas agora que ganhou as eleições vemos o resultado deste dilúvio promissor: nada para apresentar ou, no caso da Almirante Reis, uma reversão ao primeiro modelo de ciclovia: um modelo tão mau que foi abandonado e transformado na melhor solução possível que era aquela que permitia paragens de curta duração sem bloquear a via de trânsito e que só poderia ser pior se fosse seguida a augusta ideia do Livre de arrancar a fila central de árvores para ali instalar uma ciclovia (uma contradição para um partido que se quer “verde”). Regressando à “Ciclovia 1.0”, Moedas deu uma chapada na cara daqueles que lhe venderam o voto em troca do “arrancar” da ciclovia e fez-nos pensar: que democracia é esta onde se fazem promessas que se sabe que não se podem cumprir? O que significa isto para o bom funcionamento da democracia portuguesa? Basta punir nas urnas estes incumprimentos eleitorais, esperando quatro anos por essa forma dessincronizada de justiça eleitoral?

O que fez Moedas, o alquimista, o transmutador de descontentamento em votos, não foi infelizmente novo nem algo que foi feito pela última vez. Mas o que fez contribui e contribuirá para reduzir a confiança nos partidos políticos e vai erodir ainda mais a representatividade do sistema e aumentar a abstenção que tende a asfixiar o sistema democrático. Tal como Moedas, os partidos e os candidatos devem fazer menos promessas e serem muito mais cuidadosos na sua capacidade para as executar, evitando criar assim nos eleitores um sentimento (justo) de desilusão para com as suas propostas e para com a capacidade da democracia para funcionar. Devem, igualmente, manter um registo actualizado em tempo real do estado do cumprimento das mesmas e dos obstáculos e dificuldades que estão a ser encontradas e que impedem a sua boa execução. Se não o fizerem devemos construir um “promessómetro” capaz de o fazer por eles, para lhes recordar a imperativa necessidade de conter essa diarreia promissória e respeitar os mandatos democráticos.

É igualmente verdade que os partidos políticos procuram responder a este novo desafio com uma hiper-simplificação do discurso, quer para recuperar esse eleitorado perdido para os extremismos de Esquerda ou de Direita e para os populismos, quer para alimentar a voracidade insaciável de meios de comunicação cada vez mais simplificadores e incapazes de produzirem informação profunda e “lenta” para que os cidadãos possam decidir por si mesmos e que tendem, sempre, a empolar as “notícias” mais emocionais e os discursos mais radicalizados (e isto foi particularmente visível na questão da Almirante Reis). Isto significa, contudo, que, ao decidirem reagir à crise de representação criando uma crise de confiança, pela hiper simplificação das suas propostas, pela sua multiplicação e falta de realismo, os partidos afastam-se cada vez mais da realidade concreta da sociedade e dos cidadãos e acabam reforçando, de forma crescente, a sua insatisfação crónica e permanente perante promessas e compromissos eleitorais sempre adiados, cosméticas e raramente realistas ou nunca cumpridas e, no processo, podem até ganhar eleições mas, a prazo, não farão mais do que aumentar a abstenção.

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