As eleições parlamentares na Polónia, realizadas no passado dia 15 de outubro, marcaram uma viragem histórica para o país. Consideradas cruciais para o futuro da Polónia, as eleições registaram uma participação recorde de 74% – para contextualizar, nas eleições de 1989, as primeiras desde que o Partido Comunista dos Trabalhadores Unidos da Polónia abandonou o monopólio do poder em abril do mesmo ano, a afluência não chegou aos 63% – e testemunharam a vitória da oposição democrática sobre o partido nacional-conservador no poder, o Lei e Justiça (PiS). Apesar de este ter mantido uma sólida base de apoio, a oposição conseguiu capitalizar o cansaço dos eleitores, provocado pela retórica antieuropeia do governo, políticas regressivas, particularmente nos direitos das mulheres, bem como com a crescente erosão do estado de direito.
(Imagem: Tomasz Sarnecki)
De acordo com os resultados oficiais anunciados pela Comissão Eleitoral Nacional em 17 de outubro, o partido do governo, PiS, obteve 35,4% dos votos e conquistou 194 lugares no parlamento polaco – o Sejm. São necessários 231 lugares para formar uma maioria. Por outro lado, os partidos da oposição democrática – Coligação Cívica (KO), Terceira Via (TD) e Nova Esquerda (NL) – obtiveram, respetivamente, 30,7%, 14,4% e 8,6% dos votos, o que se traduz em 157, 65 e 26 lugares no Sejm. A extrema-direita, representada pela Confederação, conquistou 7,2% dos votos e 18 lugares.
Os três partidos da oposição democrática já anunciaram que chegaram a acordo para formar uma coligação governamental com uma maioria sólida de 248 lugares, com Donald Tusk, antigo primeiro-ministro e presidente do Conselho Europeu, como primeiro-ministro. No entanto, a Polónia continua profundamente dividida entre uma visão mais liberal e pró-europeia e uma agenda mais conservadora e nacionalista, o que apresenta desafios significativos para a próxima liderança do país.
Uma vitória conquistada a ferros num campo de jogo inclinado
As eleições foram um marco na democracia do país. No entanto, a corrida eleitoral ocorreu num campo de jogo claramente inclinado, onde o partido do governo utilizou diversas estratégias para manter sua vantagem.
Uma dessas estratégias foi a manipulação dos círculos eleitorais, dando menos poder de voto aos eleitores urbanos, tradicionalmente mais liberais e apoiantes da oposição. Além disso, também as assembleias de voto foram organizadas de modo a favorecer os eleitores das pequenas cidades, historicamente mais conservadoras. Isso levou a longas filas nas grandes cidades, com o último voto a ser depositado às 2:48 da madrugada, muito depois do horário de encerramento previsto às 21:00. Uma adversidade que desencadeou uma resposta extraordinária da população, que se organizou espontaneamente para levar bebidas quentes e comida a quem aguardava nas filas para votar – um ato de solidariedade que demonstrou a determinação do povo polaco.
Além disso, as eleições foram marcadas para o dia do Papa, numa tentativa de envolver a Igreja na batalha eleitoral. O governo também introduziu um referendo controverso com quatro perguntas intimamente ligadas à sua narrativa populista. Este tinha como objetivo manipular e inflamar a opinião pública contra a oposição, alimentando medos identitários e existenciais. O governo também desviou somas substanciais de dinheiro público e envolveu quase todas as instituições governamentais, empresas estatais e organizações financiadas com recursos públicos na campanha. Os meios de comunicação públicos foram transformados num centro de comunicação para o comité eleitoral do PiS, que os utilizou para difamar a oposição e assustar os cidadãos com as pragas que cairiam sobre a Polónia se a oposição tomasse o poder.
Apesar das condições adversas, a democracia liberal venceu
No contexto global atual, importa sublinhar a importância do que acaba de acontecer na Polónia. Mas, ao contrário do que tenho ouvido na imprensa portuguesa, a vitória da oposição democrática não foi uma surpresa. Pelo menos, não para quem anda pela “rua polaca”. Não era dada como certa, mas a esperança era palpável. Ainda assim, foi uma vitória notável.
As duas principais razões para esta vitória foram a posição fortemente antieuropeia do governo – uma sondagem de julho deste ano mostra que 74% dos polacos suportam a EU – e o receio muito real da deriva autoritária e antidemocrática do governo.
Mas isso apenas não seria suficiente. O que virou a balança foi a afluência histórica às urnas. Em Wilanów, o bairro de Varsóvia onde vivo, a participação foi a mais alta do país, atingindo uns extraordinários 90,88%! Para o que contribuíram vários fatores:
- Uma forte participação da sociedade civil e figuras públicas a apelarem ao voto e a retratar o ato de votar como algo trendy, enfatizando que a política tem um impacto direto na vida de todos. Isso ressoou, especialmente entre os jovens.
- As mulheres mobilizaram-se contra as políticas draconianas na área da saúde reprodutiva e também para ter voz ativa na política, fartas de verem as suas vidas e corpos regulados por homens velhos no poder.
- O regresso de Donald Tusk à liderança da oposição foi um fator chave para galvanizar o eleitorado, tal como as grandiosas manifestações de rua – a última das quais juntou cerca de um milhão de pessoas em Varsóvia, incluindo este que vos escreve. Destaque também para o bom desempenho de Szymon Hołownia, colíder da coligação Terceira Via, na campanha, que conquistou o eleitorado de centro-direita descontente com os excessos do partido no poder.
No geral, a oposição democrática teve um excelente desempenho, com uma mensagem positiva de amor e uma Polónia feliz, que ressoou principalmente junto dos mais progressistas.
Para a vitória também pode ter contribuído, ainda que marginalmente, uma peculiaridade do sistema eleitoral polaco – o chamado “turismo eleitoral”. Cerca de 400 mil polacos votaram em mobilidade. Na Polónia, este voto conta para o círculo eleitoral onde se vota, não para o de residência. Isso levou alguns eleitores a deslocarem-se para votar em círculos eleitorais mais pequenos e fáceis de “virar”.
Se por um lado, a oposição esteve bem, por outro, o partido no poder deu vários tiros nos pés. Para começar, fez uma campanha negativa, polarizada e focada principalmente no ataque a Donald Tusk.
A apenas cinco dias das eleições, duas das três principais altas patentes das forças armadas apresentaram a demissão, alegadamente devido a conflitos e falta de confiança no Ministro da Defesa. Isso minou a confiança do público na capacidade do governo de garantir a segurança do país, uma das áreas que até os eleitores mais moderados consideravam ser um ponto forte do governo.
Houve também o escândalo do envolvimento do Ministro dos Negócios Estrangeiros na venda de 250 a 300 mil vistos de trabalho a migrantes asiáticos e africanos. E o caso dos combustíveis – a empresa petrolífera estatal Orlen, controlada pelo partido no poder, baixou os preços dos combustíveis como manobra de propaganda, mas a medida saiu pela culatra. É que, devido à grande procura, o combustível esgotou e trouxe à memória dos polacos as prateleiras vazias do tempo da época socialista. Big mistake!
Estas eleições demonstraram que, apesar das adversidades, a democracia e a vontade do povo podem prevalecer. Que é possível reagir ao populismo e à sua propaganda. A Polónia deu um exemplo notável de resiliência democrática e mostrou que vale a pena investir na organização política e cívica se quisermos criar mudança, porque funciona e faz falta!
A transição do poder: Um caminho acidentado
A transição para o novo governo não será desprovida de obstáculos. O executivo em exercício parece determinado a agarrar-se ao poder, para o que contará com a ajuda do Presidente Andrzej Duda. A razão é simples: o receio de que os abusos de poder dos últimos oito anos sejam escrutinados e investigados.
O procedimento é o seguinte: o Presidente deve convocar o parlamento recém-eleito, o Sejm, no prazo de 30 dias – fugas de informação para a comunicação social apontam para 13 de novembro. O Sejm irá então eleger um presidente e aceitará a demissão do governo cessante. O Presidente Duda terá então duas semanas para designar um novo primeiro-ministro. Segundo as mesmas fontes, nomeará o atual primeiro-ministro Morawiecki para tentar formar um gabinete, apesar de ambos saberem que isso não garantirá o voto de confiança necessário. Esta manobra de adiamento significa que a oposição só poderá formar um novo governo em meados de dezembro.
Embora as margens de manobra sejam limitadas, ainda há espaço para causar danos antes de sair, minando a transição do poder e criando oportunidades para eliminar evidências de más práticas de governação. Um sinal revelador foi a aquisição, cinco dias antes das eleições, de 51 trituradores de papel pela Agência de Segurança Interna (o equivalente ao nosso SIS).
Desafios iniciais e um Presidente hostil
Apesar de todos os obstáculos e táticas de adiamento, a Polónia terá um novo governo. Mas isso não significa o fim das dificuldades.
O novo governo terá de conviver com uma oposição mobilizada e um Presidente eurocético e hostil, além de um tribunal constitucional e um banco central capturados pelo PiS. Isso limitará a capacidade de Tusk em adotar uma política arrojada. A verdadeira mudança na Polónia poderá só ocorrer após as eleições presidenciais de 2025.
Um exemplo das dificuldades que esperam o novo governo de Tusk é que no próprio dia da divulgação dos resultados, o Presidente Duda enviou um sinal de desafio ao nomear 72 juízes por meio de um procedimento considerado ilegal pelos tribunais da EU, confirmando as expectativas de que ele irá obstruir os esforços para normalizar as relações da Polónia com a UE.
Restaurando a prática parlamentar e normas democráticas
Um dos principais efeitos positivos das eleições será o restabelecimento do controlo parlamentar do governo e o regresso de um processo legislativo adequado. Durante oito anos, o PiS desafiou as normas democráticas de várias maneiras.
Ministros recusaram-se a comparecer perante as comissões, foram retidos dados vitais sobre o orçamento e despesas, a comissão dos serviços secretos não foi presidida pela oposição, quebrando uma prática bem estabelecida. As leis foram frequentemente aprovadas sem avaliação de impacto, consultas públicas e debate adequado, muitas vezes a meio da noite. Este comportamento constituiu uma erosão tão grave das normas democráticas como o abuso regular do poder do presidente do parlamento (marszałek Sejmu) para limitar o debate e assediar os deputados da oposição.
Outros impactos positivos da transição de poder incluem a restauração do estado de direito, o fim da impunidade política, a ausência de ameaças à pluralidade e liberdade dos media, aplicação imparcial da lei e o fim da gestão danosa e partidária das empresas públicas.
De realçar também que o novo parlamento conta com um número recorde de mulheres: 136 em 460, ou seja, quase um terço. 40% dos lugares conquistados pela Coligação Cívica e pela Esquerda serão ocupados por mulheres.
Sinais de uma nova era para o país, mas a jornada para uma Polónia mais estável e justa exigirá perseverança.
Reflexões sobre o que podemos esperar do novo governo
No plano externo, o novo governo acabará com o isolacionismo autoimposto da Polónia e procurará assumir um novo papel na cena europeia, aproveitando a experiência e reputação de Donald Tusk. O tom em relação a Bruxelas será o da cooperação e não o do confronto.
O novo governo estará ciente dos riscos de um segundo mandato de Donald Trump e, portanto, aberto às ideias da França e da Comissão Europeia sobre o reforço da resiliência estratégica da UE.
As relações com a Alemanha deverão melhorar significativamente, embora persistam algumas questões bilaterais sensíveis. De qualquer forma, a Polónia deverá deixar de usar a retórica antialemã para fins políticos internos de curto prazo.
A Polónia deverá assumir um papel de maior liderança na Europa Central. É expectável um relacionamento mais estreito com a Chéquia. Por outro lado, o novo executivo é uma má notícia para o governo populista da Hungria, sendo expectável que a Polónia adote uma postura crítica em relação ao autoritarismo de Orbán e passe a apoiar possíveis sanções contra Budapeste. Para já, é uma incógnita como evoluirá a relação com o recém-eleito governo da Eslováquia, liderado pelo populista Robert Fico.
O novo governo será fortemente pró-Ucrânia e irá apoiar as suas aspirações de adesão à EU, o que não significa negligenciar os interesses económicos da Polónia. Mas haverá um diálogo construtivo. A primeira viagem ao estrangeiro do novo primeiro-ministro deverá ser mesmo a Kyiv. A Polónia continuará a apoiar fortemente a luta da Ucrânia contra os invasores russos e a considerar a Rússia um país hostil, com o qual nenhum governo polaco quererá relações próximas.
As relações com os EUA serão reforçadas, e centrar-se-ão no apoio à Ucrânia e na defesa do flanco leste da OTAN. Para isso contribuirá também o facto de os EUA já não terem de fazer ingerências relacionadas com o estado de direito ou com a interferência nos meios de comunicação social privados na Polónia. O novo governo deverá manter os contratos de equipamento militar celebrados pela anterior administração.
Tusk e seu governo terão de definir a sua posição em relação à China, sendo provável uma postura mais cautelosa e crítica face ao regime autocrático de Pequim.
No entanto, o foco do novo governo será predominantemente interno – restaurar o estado de direito, reverter as reformas no sistema judicial, relançar o crescimento económico e investigar abusos de poder do governo anterior. Esta não será uma tarefa fácil, especialmente com o país dividido e um presidente hostil com poder de veto.
Lições para a defesa da democracia
A difícil vitória da oposição nas eleições polacas oferece lições valiosas para outros países que enfrentam governos populistas e em deriva autoritária. Revela que é possível derrotar nas urnas governos que manipulam as regras a seu favor e controlam parte significativa das instituições.
O caminho passa por unir os partidos da oposição num projeto comum, mobilizar os eleitores e apostar numa mensagem positiva, inclusiva e focada na defesa dos direitos e no combate às desigualdades.
Ao invés de copiar a polarização tóxica dos populistas, a oposição polaca concentrou-se em problemas que afetam o dia-a-dia dos cidadãos. E foi bem-sucedida em levar às urnas novos eleitores, como jovens, mulheres e desiludidos com a política, que fizeram pender a balança nas eleições com uma afluência às urnas sem precedentes.
Já o partido no poder parece ter perdido o pulso à sociedade. Ao tentar importar as táticas agressivas de outros líderes populistas – a campanha do PiS recorreu a conselheiros do Fidesz de Viktor Orbán – a sua mensagem de medo e ataques pessoais não convenceu.
A Polónia encontra-se ainda numa encruzilhada, entre regressar ao caminho europeu ou aprofundar a deriva autoritária. A parte mais difícil talvez só agora comece, com a necessidade de sarar as feridas sociais e unir os polacos em torno de um projeto comum.
Uma das principais lições é que não se pode combater o fogo do populismo com mais fogo e ódio. Quando a oposição democrática se une num projeto inclusivo e mobiliza os cidadãos, consegue gerar uma onda de esperança mais forte que o medo. Embora árdua, a vitória da oposição prova que não existem poderes absolutos ou perpétuos. Quando a sociedade se organiza e participa, a mudança acontece mesmo em contextos adversos. Estas eleições trazem esperança de que a democracia liberal e os direitos humanos podem prevalecer contra ventos populistas.