Não percebo de futebol, não tenho nada contra nem a favor. Mas a sua beleza consiste no poder que tem de gerar emoções, unir nações, despertar o que de melhor se faz em termos futebolísticos e fair play. Contudo, não me é possível ficar indiferente à dura realidade e à sistemática violação dos direitos fundamentais a que os trabalhadores envolvidos no evento estão a ser sujeitos no decorrer da construção das infraestruturas que estarão disponíveis para a realização do Mundial do Qatar. Independentemente das questões culturais, da sua proveniência, da cor da pele, do género, da religião, do tipo de contrato, existe um conjunto de premissas ao nível da segurança que estão a ser descuradas de forma reiterada. Neste sentido, parece-me que toda a beleza e grandeza de um evento desta natureza estão seriamente comprometidas, tal como a imagem das marcas que o patrocinam (Adidas, Coca-Cola, Visa, McDonalds) e da própria organização do mundial (FIFA e o Estado do Qatar).
A realidade é que os direitos considerados universais pelas sociedades ocidentais não se coadunam minimamente com o rio de sangue que as estatísticas oficiais do Mundial do Qatar de 2022 evidenciam. As estatísticas reportam um total de 6 750 trabalhadores que morreram a trabalhar, o número de mortes é esmagador, são 6 750 pessoas que pereceram na construção de um espaço que celebra a vida, a união entre nações e o desporto. São números escandalosos e provavelmente ainda estarão a anos luz da realidade. Sabemos que muitos dos trabalhadores no país não são legais e, concomitantemente, não constam destas estatísticas oficiais. Um outro fato “interessante” que consubstancia a minha afirmação é que no Qatar não existem autópsias: até prova em contrário a causa da morte é sempre “causas naturais” ou “doenças cardiovasculares”, mesmo que seja a morte de um jovem de 18 anos a trabalhar na construção civil (setor de atividade complexo pelos índices de sinistralidade que regista anualmente em Portugal e noutras partes do mundo). Para ser considerado acidente de trabalho no Qatar, o trabalhador tem de chegar vivo ao hospital e morrer na sequência do evento. O Registo Nacional de Traumas deixa de fora um grande número de acidentes mortais, porque esta zona cinzenta é muito confortável para as entidades oficiais. O culminar das desventuras destes trabalhadores é estarem subjugados ao sistema Kafala, profundamente intrincado nos países árabes com uma base discriminatória (especialmente com base na raça e no género) e que se caracteriza, ainda, pela exploração e abuso generalizados dos trabalhadores por parte das entidades patronais.
É vital caracterizar esta força de trabalho, que é o motor da economia do Qatar e que está na base da edificação daquele que se espera ser o maior evento desportivo do ano. A força de trabalho que participa na construção deste evento mundial pode ser caracterizada da seguinte forma, são trabalhadores oriundos de países como a Índia, o Bangladesh, o Nepal e o Siri Lanka e que representam 62% da população total do Qatar (aproximadamente 3 milhões cidadãos). Os dados apontam para que 44% destes imigrantes estejam afetos à construção civil, o que consubstancia os relatos que emergiram de um questionário realizado aos trabalhadores que participam na edificação do projeto desde 2018. Principais conclusões do inquérito aos trabalhadores: (1) evidenciaram jornadas de trabalho diário compreendidas entre as 10 a 14 horas, (2) com semanas de trabalho de 6 dias, (3) existem ainda situações de trabalhadores com jornadas superiores a 10 horas de trabalho diário e 148 dias de trabalho ininterrupto sem período de descanso semanal e (5) registos de trabalhos a serem desenvolvidos sob o sol escaldante do deserto em que os trabalhadores são vítimas do calor (stress ao calor) com temperaturas acima dos 40ºC e com níveis de humidade praticamente inexistente (à semelhança do que aconteceu em Espanha há bem pouco tempo). Estima-se que neste momento as condições de trabalho se tenham degradado de forma vertiginosa, devido à proximidade da data da realização do evento.
No meu humilde entendimento estamos sem dúvida perante a condição de “trabalho escravo”, que, à luz do direito internacional, prevê pesadas sanções. Existem inúmeros relatos não oficiais de que esta posição vulnerável dos trabalhadores se prende com as promessas de trabalho que lhes são feitas nos países de origem, mas que não são cumpridas nos contratos que lhes são apresentados no Qatar mantendo-se, assim, reféns das redes de exploração e tráfico humano. Contudo, convém fazer a ressalva de que estes trabalhadores representam aproximadamente 6% da população global de imigrantes do Qatar e que, por força das “auditorias e inspeções” por parte dos organizadores do mundial, se encontram “ligeiramente mais protegidos” que os restantes.
É de lamentar a posição vulnerável dos trabalhadores do Mundial do Qatar que na sua tentativa desesperada de fugir à dura realidade dos seus países de origem (Índia, Bangladesh, Nepal e Siri Lanka), os aprisiona num regime muito próximo da escravatura, sem condições de segurança e de saúde que lhes permita desenvolver o seu trabalho e, que lhes ceifa o seu único bem: a vida.
Em suma, o desafio é olhar para este absurdo de 6 750 pessoas mortas como um falhanço e/ou um retrocesso ao nível das condições de segurança, da legislação laboral e das convenções internacionais e tratados da Organização Internacional do Trabalho. Será mesmo que estas 6 750 mortes não deveriam ser consideradas como um crime contra a humanidade?