Devagarinho — eu acho — foi ganhando espaço a ideia que não devemos “forçar”, “impor” ou “exigir” alguns comportamentos ou certas mudanças aos nossos filhos. Porque “eles têm pouco tempo para ser crianças”. Porque isso seria pouco “democrático”. Ou porque devemos dar a oportunidade de lhes caber a eles o momento em que decidam abandonar um determinado comportamento. Seja prescindirem da chupeta. Abandonarem as fraldas. Ou deixarem de acabar todas as noites no quarto dos pais. No fundo, foi-se criando a ideia que contrariar é traumatizar. Como se qualquer não, sem um “comboio” de explicações e de justificações, doesse a uma criança.

Ora, não questiono que um “não doa. Nem a bondade da intenção com que os pais e os seus “nãos” se vão relacionando com as crianças. Mas acho que muitos pais talvez tenham crescido com tantos “nãos” tão imperativos e pouco razoáveis que, na ânsia de darem aos filhos a oportunidade deles terem a opinião que os pais não puderam ter, construíram esta ideia de um não “amigo” do traumatismo. Mas o “não!” não é traumatismo. É como o norte para a bússola.

A noção de traumatismo foi, em boa hora, trazida pela psicanálise para o senso comum. Porque há mais de cem anos, se assumiu que a infância não era um passeio. Que as crianças não andavam todas distraídas. E que as experiências de sofrimento infantil condicionavam — muitas vezes, gravemente — o desenvolvimento de inúmeras crianças, para toda a vida. Trazendo-lhe imagens dolorosas que pareciam ser “nódoas difíceis”. E que, quer estivessem elas no Saara ou nas Galápagos, as “perseguiriam”, por dentro. E que, contra a sua intenção, acabariam a projectar-se noutras relações significativas que viessem a ter. E a enviesá-las. Tornando-as muito semelhantes àquelas que terão gerado esses estados de tristeza e de angústia. Como se tais cicatrizes fossem uma espécie de “destino” que parecia perpetuar, noutras relações, o sofrimento infantil.

Nenhuma infância é “cor de rosa”. Da infância guardam-se todas as memórias. Quer a memória da tarte de maçã da avó como do colo fofo da mãe, quando ela canta. Como daquilo que assustou. Do tom, ora misterioso ora “cheio de picos, do olhar dos nosso pais. Ou das situações infelizes que, sem quererem, eles nos criaram. Às vezes, levamos a vida toda à espera que algumas destas memórias se apaguem. Como se desejássemos passar a ser indiferentes diante delas. Por mais que algumas “não deixem”.

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Os pais são, de facto, os primeiros e os grandes responsáveis por sermos como somos. E, muito longe de representar alguma coisa com que devam atormentar-se, isso deve ser um motivo do maior orgulho para todos eles! Se bem que, porque os pais não são perfeitos, haja sempre alguns episódios que todos ganharíamos se nunca tivessem existido. Porque doem, mesmo quando se recordam. É em relação a estes episódios que é tremendamente sensível falar-se da responsabilidade dos pais. Porque eles vivem isso como se alguém os estivesse a culpar. E não é verdade. Os pais são responsáveis; mas não são culpados. As coisas acontecem não por eles quererem. Mas porque não as conseguiram evitar.

Aquilo que incomoda todos os pais é que não se cresça sem dor. Não sermos omnipotentes e sermos contrariados dói e deixa triste. Uma desilusão dói e deixa triste. Uma frustração, um conflito ou um insucesso doem e deixam tristes. Por mais que os pais se aflijam quando sentem um filho a viver uma dor ou, simplesmente, a sofrer, a dor traz contraditório à felicidade. E, por estranho que pareça, dentro de alguns limites, ela ajuda a crescer. Porque nos leva a apurar os nossos desejos e as nossas convicções. Porque nos desafia para a garra e para a determinação. Porque nos torna perseverantes. E, já agora – porque há sempre episódios grandes e pequenos que nos irão magoar pela vida fora – porque nos ajuda a aprender a viver com a dor. A reagir-lhe. E a vencê-la.

É por isso que esta ideia que os “nãos” traumatizam as crianças não é verdade. Traumatiza mais que elas não tenham pais que sejam claros acerca dos seus “nãos”. E que, por falta deles, as obriguem a andar de exagero em exagero à procura de quem lhes defina o perímetro daquilo que podem fazer e as proteja.

É porque as crianças não têm a vida toda para serem crianças que os “nãos” dos pais as protegem. Por outras palavras, é melhor que elas sejam crianças para sempre, que guardem, sobretudo, memórias boas, cheias, intensas de episódios que viveram com os pais, apesar dos “nãos” que eles lhes exigem; do que haver a sensação duma atmosfera onde os “nãos” surgem quando elas os aceitem, o que as torna “mandonas”, rezingonas e “agitadotas”. Com um senão: se o “porque não” do “não, porque não!” dos pais de hoje é, no essencial, sustentado pelos seus bons exemplos (dos quais as crianças extraem os motivos de cada não), o “não, porque não!” de antigamente seria mais: “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”.  Por outras palavras, há uma diferença entre os pais democráticos, cuja autoridade resulta dos bons exemplos, e os pais que confundem autoritarismo com respeito. Os primeiros, percebem que ser feliz não é o contrário de estar triste. Logo, se a imensa maioria dos pais é assim, porque temem eles o “não”, se sem ele as crianças não aprendem o sim?

Crianças felizes não são aquelas que podem fazer aquilo que lhes dá na “real gana”, até quando lhes apeteça. Essas, são crianças, sim. Mas são mais vezes “pais” delas próprias do que deviam. Porque precisam de ser elas a definir aquilo caberia aos seus pais fazer. E, se a ideia é que todas as crianças possam ser crianças por todo o tempo em que possam ser crianças, crescendo assim serão “menos crianças”, por menos tempo. E crescerão com mais dor onde podia existir mais felicidade. E isso é mau.