Há 45 anos, a 1 de setembro de 1975, em pleno PREC, o governo de Vasco Gonçalves nacionalizava os estaleiros de Viana do Castelo.
Há 4 anos, também a 1 de setembro, o governo de António Costa criava o Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado (FNRE).
O que liga dois acontecimentos que distam 41 anos e que ocorrem em circunstâncias tão distintas?
Uma simples questão: a ideia de Estado e a sua forma de governação.
Num caso como no outro, a nacionalização e a estatização são formas de acumular poder, de criar mais uns quantos lugares para as clientelas, de alimentar ementas ideológicas, de capturar os interesses em que orbitam estes negócios e se necessário manipular os recursos públicos em nome de uma qualquer falsa solidariedade ou desígnio nacional, para justificar todo o tipo de arbitrariedades.
Mas há uma diferença. Os estaleiros de Viana do Castelo eram um negócio rentável antes da nacionalização. O que se seguiu foi tão ruinoso que, nas duas décadas anteriores à privatização, acumularam prejuízos superiores a 180 milhões de euros. Quanto ao FNRE, criado em 2016 para reabilitar edifícios e fazer habitações acessíveis, decorridos 4 anos, gastaram 7,1 milhões de euros do dinheiro do nosso fundo de pensões e não fizeram uma única casa.
Em agosto de 2018, escrevi no Observador sobre este “Estranho caso do Fundo de Reabilitação Urbana anunciado pelo Governo”. Uma das medidas que constava do Plano Nacional de Reformas apresentado em maio de 2016 era que o Fundo recuperaria 2.702 fogos degradados até 2020. Estamos em 2020 e nem sequer iniciaram uma obra!
Logo a seguir, em outubro de 2018, surge uma das notícias mais estapafúrdias sobre o FNRE: “Obras em 50 imóveis ainda este ano através do Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado”. Seriam 218 fogos e (pasme-se o pormenor) 390 camas. Mais uma vez, passou o final de 2018, decorreu o ano de 2019, aproximamo-nos do final de 2020 e… nada!
Entre a lista de 50 imóveis estão edifícios notáveis como o Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, o Convento das Convertidas, em Braga e o antigo quartel da GNR no Largo do Cabeço da Bola, em Lisboa. Vazios, degradados, nalguns casos já sem vidros e até sem janelas, estes edifícios são o melhor retrato de um governo que reserva para si o privilégio de deixar o património do Estado ao abandono, enquanto penaliza com agravamentos fiscais o que é dos cidadãos e contribuintes.
Desde 2016, a cada promessa incumprida, sucede-se outra, mais extravagante, igualmente por realizar. A cada prazo anunciado e ultrapassado, surge outro, também adiado. O FNRE merece entrar para o Guinness do disparate nacional.
Parece que o governo anda a jogar às escondidas, numa espécie de campeonato de promessas e anúncios destinado a testar o grau de imbecilidade dos seus seguidores. Mas fica a suspeita, será aselhice, burrice, incompetência ou demasiada arrogância para nos oferecerem este triste espetáculo?
Não é por acaso que o presidente da Câmara Municipal de Viseu, uma das primeiras entidades a aderir ao FNRE, no passado dia 20 de julho declarou ao Público: “As nossas expectativas saíram goradas e frustradas”. Depois de esperar 4 anos por esta medida da “nova” geração de políticas de habitação, a Câmara Municipal de Viseu decidiu abandonar o FNRE e agora declara que pretende usar o “velho” Reabilitar para Arrendar criado em 2013. Pelos vistos, a “nova” geração de políticas de habitação teve um envelhecimento muito precoce…
É evidente que decorreu o tempo suficiente para se concluir que a tentativa de estatizar a reabilitação urbana corporizada no FNRE, é um enorme fracasso. E esse fracasso é ainda maior quando está demonstrado que se está a financiar no nosso fundo de pensões de onde já “voaram” 7,1 milhões de euros e já se sabe que não é possível assegurar a rentabilidade mínima de 4% exigida pelo mesmo fundo de pensões.
Em apenas 4 anos e com um histórico destes, o FNRE é, 41 anos depois, a reprodução da nacionalização dos estaleiros de Viana do Castelo, feita em pleno PREC, pelo gonçalvismo.
Quando me recordo das polémicas sobre o processo de privatização dos estaleiros de Viana do Castelo, ocorre-me aquele “velório” com a deposição de uma coroa de flores, que vários responsáveis do PS e da Câmara de Viana do Castelo fizeram no dia 10 de janeiro de 2014, ao tentarem desacreditar a privatização.
Face ao atual sucesso dos estaleiros, é tentador pensar que este tipo de “velório” é um exorcismo que pode resultar: nos estaleiros já não há prejuízos, impulsionou-se o empreendedorismo, criou-se emprego e riqueza e até António Costa vestiu traje de cerimónia e foi lá inaugurar navios em 2019, vergando-se perante o sucesso da privatização feita em 2014.
Não sou dado a superstições, nem exorcismos, mas parece-me que tentar um “velório” igual ao de 2014 com o FNRE, não é solução para aquela desgraça.
Ironicamente, temos um governo que há mais de 4 anos se propagandeia com várias dezenas de edifícios propriedade do Estado, vazios, degradados e ao abandono, que valem milhões e milhões de euros, enquanto se queixa da falta de habitação acessível e da especulação imobiliária praticada por certos agentes privados.
Será que eles têm consciência que estão a contribuir para a especulação que tanto criticam?
Terá sido obra do acaso a exceção que o governo criou para o património público devoluto e sem utilização, quando alterou o Código do IMI em 2018 (Lei n.º 51/2018) e cirurgicamente inseriu uma norma isentando-o das penalizações e agravamentos fiscais que aplicou a todos os restantes imóveis? Obviamente, não foi coincidência.
Sejamos práticos. A estatização do FNRE e a nacionalização da reabilitação urbana que este representa, que já está a delapidar as poupanças do nosso fundo de pensões só tem uma solução: desmantelem o FNRE e, rapidamente, ponham estes edifícios à venda ou em regime de concessão com as devidas contrapartidas para as políticas públicas de habitação. Tal como nos estaleiros de Viana do Castelo antes da privatização, caminhamos para mais um desastre, com o Estado a desempenhar um papel miserável de promotor e mediador imobiliário e gestor de fundos imobiliários.
Se persistirem nesta comédia do FNRE, que ao menos os moradores do prédio Coutinho em Viana do Castelo tenham a sorte de este edifício ser integrado no FNRE… seria a garantia que jamais o iriam demolir, dada a total ineficiência deste fundo.
Victor Reis é arquitecto, presidente do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana de 2012 a 2017