Não. Não estávamos preparados.

A Alice era enfermeira. Os enfermeiros são quem cura, mas também adoecem. São quem cuida, mas também sofrem. São quem salva, mas também morrem.

Há uma grande tendência em ignorar a humanidade por baixo da bata. Às vezes, essa instrumentalização das pessoas não faz mossa maior do que uma desilusão com a profissão. Noutras, a ilusão termina da forma mais hedionda e o pedido de ajuda só é audível quando não há salvação possível.

Por baixo da casca grossa da fina farda, há pele e um coração. Atrás das cogulas que ensurdecem há um desejo profundo de ouvir uma palavra de gratidão. Tapados pelos óculos de protecção, há olhos que choram pelo que vêem e, muitas vezes, pelo que a vista não alcança. Agradecemos as máscaras. É nelas que se encerram os gritos que muitas vezes queríamos dar.

O doente, porque o vemos sempre pior que nós, nunca se apercebe, mas os profissionais de saúde também choram e sentem medo, também se cansam e às vezes, infelizmente, desistem.

A natureza humana é emocional e empática, a enfermagem é uma profissão de contacto e de cuidado. De um momento para o outro, o invisível atirou-nos para o impossível e fomos obrigados a condicionar o contacto e os convívios. Não voltámos a tocar nem a abraçar, não conseguimos ver rostos e os olhos vazios podem indicar apenas a exaustão.

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Não. Não estávamos preparados. Ninguém está preparado para viver isolado e sentir o peso do mundo às costas. Ninguém foi feito para ter de acumular um rendimento adicional para poder sobreviver, depois de 12 horas de trabalho em espelho. Ninguém é ensinado a viver sozinho, com a responsabilidade de fazer os outros voltarem, seguros, para junto das suas famílias.

Já chamaram de tudo à Covid-19. Desde pandemia do medo a doença infecto-contagiosa do foro respiratório. Todos, ou quase todos, têm um pouco de razão. Mas, na verdade, o que esta doença realmente é, é a doença da solidão.

Não há doença tão grande como apartarem-nos de tudo o que amamos. Afastar os pais e os irmãos, não beijar os filhos, ou ver o marido a dormir sozinho para o manter em segurança é ser um recluso sem pena, a contar os dias que já passaram e nunca os que faltam, porque isso, na realidade, ninguém sabe.

Não sou o protótipo de enfermeiro. Apesar de quase 25 anos de experiência profissional, ainda não me consigo conformar com a morte.

Se, por um lado, o serviço de ortopedia me protegeu de assistir muitas vezes ao fim da vida, por outro, a Viatura Médica de Emergência e Reanimação formatou-me a prestar assistência de forma inexorável, por vezes sabendo já não haver solução.

Não. Não estávamos preparados. Mas o país reagiu, respondeu, reorganizou-se e evitou um mal maior, conseguindo controlar durante alguns meses a propagação do SARS-CoV-2. Tudo evoluiu, o material começou a chegar, houve investimento em equipamentos e infra-estruturas. Tratou-se de quase tudo, menos do apoio psicológico aos profissionais de saúde. Está a ser duro, muito duro para todos. Imaginem, então, o sofrimento mudo dos enfermeiros e dos médicos, passando pelos auxiliares e técnicos hospitalares. A saúde mental é o parente pobre do SNS, mas pode ser ela a quebrar o país neste Inverno. É fundamental que as tristes circunstâncias destes dias, à semelhança do que já tinha acontecido noutros países, nos ensinem e nos motivem a melhorar e a apoiar os profissionais que estão cada vez mais expostos a depressões, burnout e esgotamentos nervosos.

Não há honra na morte. Mas honremos os que se sacrificam, os que perdem e não aguentam mais, fazendo uma aposta inequívoca no acompanhamento dos profissionais de saúde.

É difícil, dirão. Pois bem, como diria o pai da personagem com o mesmo nome que a enfermeira de que falo: a única forma de alcançar o impossível é acreditar que é possível.