Não querendo desrespeitar pessoas nem diagnósticos, mas sendo eu uma observadora de pormenores, raridades e/ou exceções à regra, trago como convidado o tema Síndrome de Asperger. A designação entrou em vias de extinção por ter sido integrada no DSM-V como Espectro do Autismo (funcional) e, embora seja cada vez mais frequente nos vinte anos da minha prática clínica, continua a ser um diagnostico silencioso que passa despercebido aos olhos de muitos — que, ao constatar eventualmente alguma coisa, se referem apenas como “são atrasados” ou “esquisitos” ou “têm uma doença mental qualquer”.
Confesso ter tido na altura sentimentos ambivalente para com esta integração, tendo em conta que acompanho há vários anos pessoas do Espectro de uma ponta do eixo à outra e, na prática diária, são muitas as caraterísticas e as capacidades que os diferem.
Em consulta ouve-se frequentemente: “são diferentes, não se adaptam, têm problemas de comunicação e de relacionamento, vivem num mundo muito próprio e devem muito à destreza”.
De facto são pessoas mais fechadas, com interesses muito específicos, com um perfil cognitivo normal ou acima da média, com uma fala por vezes monocórdica e detentores de palavras caras. É-lhes difícil a compreensão de ironia, sarcasmo e frases com segundo sentido, uma vez que a mente vai à literalidade das palavras. Quanto à motricidade algo atabalhoada, de facto “tombam” mais que o habitual mas atrevo-me a dizer que tombam para o lado certo do que deveriam ser os valores e os fundamentos base do comportamento humano. E explico porquê: são simples, humildes, têm um sentido de justiça digno de nobreza, são diretos, verdadeiros e extremamente leais.
Se têm um mundo próprio? Talvez. Mas na verdade talvez precisem de se refugiar nele para sobreviverem ao mundo que se diz “nosso”, o dos que não estão no Espectro. Quanto à comunicação, quem nos diz que a nossa é a mais correta, tendo em conta que existe uma tendência inata para florearmos palavras e sentimentos e eles não?
Aliás, o que poderá ser a grande diferença é que na Síndrome de Asperger as palavras, os assuntos, os pensamentos, as ações são revistas mentalmente vezes sem conta até que considerem ser as mais apropriadas. Pensar é, na verdade, um ato de guerra, onde todas as variáveis lutam entre si para que “ganhe a mais forte” ou a probabilisticamente mais acertada.
Assim sendo, e tendo em conta toda a hipersensibilidade e hipersensorialidade, todo este exercício mental que parece nunca ter fim — e todo este bom senso para medir e avaliar os sentimentos e as necessidades dos outros, mesmo correndo o risco de bloquear todo um sistema neuronal, emocional e comportamental fruto de um overthinking e uma tentativa de adaptação — eu diria ser muito provável que estejam sempre a um passo de um quadro depressivo, de uma desistência quase total do que os rodeia, de uma necessidade de espaço/isolamento.
Não, não são distraídos – estão é a pensar demasiado.
Não, não são frios – estão é absorvidos a sentir demais.
E não, não querem distância – querem sentir que são úteis, importantes e que a sua existência tem um valor e um propósito.
Quando se fala em Saúde Mental — ou ausência dela — tiro o chapéu a estas pessoas. Porque a integridade que os define é tão imensa, que se isso não é ser-se “saudável”, então não sei o que será.
Marta Silva, formada em Psicologia Clínica e em Neuropsicofarmacologia, é especialista em Psicologia Clínica e da Saúde. A sua prática clínica é maioritariamente de intervenção comportamental e exerce em contexto de clínica privada, domicílios e em meio hospitalar, intervindo ainda em escolas e casos de Tribunal de Família e Menores.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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