Há povos que são governados por gente que assume os seus actos, logo gente que erra ou acerta. A nós, portugueses, neste tempo que levamos do século XXI, calhou-nos outra estirpe de gente. Que gente é esta? Uma gente que à menor questão ilude os problemas argumentando que foi tudo um equívoco ou um mal-entendido, gesto que em si mesmo é uma forma matreira de transferir o ónus da questão para os outros: os que não percebem – os equivocados – ou pior aqueles que percebem mal – os maus entendedores.

Quem seguir as declarações dos políticos portugueses acreditará que estes têm o infortúnio de pairar sobre um povo de gente ignara que ora se equivoca ora cai em mal-entendidos. Perceber não está por assim dizer ao nosso alcance. Mas quem é que mal-entende quem? Por exemplo, no caso da exoneração do Chefe do Estado Maior da Armada (CEMA), o presidente da República veio já tranquilizar-nos garantindo que “Todos os equívocos sobre a polémica na Armada estão esclarecidos” como se tudo se tivesse resumido a uns trocadilhos que nós no nosso fraco entender não discernimos, e não a uma perturbante sucessão de factos que não estão de modo algum esclarecidos: um Governo que não aceita críticas, faz uma reforma da instituição militar na lógica do quero, posso e mando e não tolera a oposição do actual CEMA, Mendes Calado, a essa reforma; uns militares que concebem a ascenção a Chefe do Estado Maior da Armada como um carrossel em que entram e saem vice-almirantes a tempo de  atingirem o cargo de CEMA antes da idade da reforma; um Presidente da República que trata os assuntos de Estado com o imediatismo de um comentador, perorando no meio de uma visita à Casa do Artista sobre a exoneração do Chefe do Estado Maior da Armada. Para que a rábula ficasse completa temos depois o Governo a lembrar que a exoneração não estava a acontecer até porque, como Marcelo sabia, ela estaria agendada para 2022. Em resumo, não só os equívocos não estão desfeitos como esta sucessão de factos nada tem de equívoco, antes pelo contrário, com assinalável clareza, expõe os bastidores de um  poder que se tornou um fim em si mesmo.

Já foi assim quando o primeiro-ministro chamou “cobardes” aos médicos e depois veio dizer que fora tudo “um mal-entendido” ou o Secretário de Estado para a Internacionalização, Eurico Brilhante Dias, veio explicar que fora mal interpretado após ter declarado que Portugal ganhou com a pandemia. Portanto, uma vezes mal-entendemos, outras não sabemos interpretar as mensagens que nos chegam do lado de quem detém o poder. Enfim, nunca estamos à altura de quem nos governa. Porque o poder esse nunca está em causa!

Esta transferência da atenção dos factos para a interpretação (ou falta dela) que deles fazemos é uma tendência que crescerá tanto mais quanto a classe política não tiver capacidade nem coragem para enfrentar a realidade do país. Ora este pavor a ser apanhado a decidir, que na classe política é uma táctica para manter o poder, está a contaminar a administração pública, aí por razões de sobrevivência. É certo que ser funcionário público é visto por boa parte da população como uma forma de ganhar mais trabalhando menos e usufruindo de um conjunto de garantismos, entre eles o do emprego vitalício. Mas começa a ser crescente a fuga dos cargos e funções da administração pública que implicam ter de tomar decisões, ter de agir, estar frente a frente com as pessoas, sem que o funcionário/titular  em questão se possa refugiar na armadura dos procedimentos e das burocracia. São os concursos por preencher dos professores — Mais de 100 mil alunos ainda sem professores, alertam sindicatos. Falta de professores tem-se vindo a acentuar de ano para ano;  — que se somam às vagas dos agentes policiais por preencher — PSP preocupada com vagas por preencher em concurso de novos agentes  — ou os hospitais do SNS cujos directores consideram não terem condições para exercer o seu trabalho — Um mês depois da demissão do diretor do serviço de Obstetrícia do Hospital de Setúbal, diretor abandona cargo. 

Existirão outras e diversas razões para cada um destes títulos  mas eles têm um denominador comum:  quem não pode invocar para si o privilégio de ser mal entendido confronta-se com uma realidade dura que nada tem a ver com a verdade oficial.

PS. Voltou a reportagem sobre o Presidente em calções de banho! Em São Tomé e Príncipe Marcelo recuperou a performance balnear. Como não podia deixar de ser houve selfies e alguma assistência. Felizmente que os presidentes só fazem dois mandatos ou Marcelo acabava a tomar banho  sozinho.

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