Em Relações Internacionais estudamos algo conhecido como o Dilema da Segurança. Isto é uma das bases do pensamento realista e basicamente descreve uma situação em que um dos lados aumenta as suas defesas com o intuito de se proteger, mas, ao fazê-lo, o lado oposto também investe nas suas capacidades defensivas porque estará mais vulnerável aos seus ataques. Os dois lados entram, assim, progressivamente, num ciclo vicioso de armamento e a tensão e desconfiança atinge patamares estratosféricos. Enquanto que este dilema serve teorias de geopolítica e geoestratégia, cada vez mais se aplica no dia-a-dia da política doméstica.

A geração pós-Abril é tão privilegiada que não consegue ver este dilema a gerar-se.

Imaginem o grau a que chegámos quando desembarcar na Normandia e pintar os lábios de vermelho entram ambos na categoria de “combater o fascismo”.

Não, não estou a apoiar o Ventura nem os seus “minions“. Não, não estou a legitimar o ataque de um candidato a Belém a outros com “bocas” e “golpes baixos” direcionados à sua imagem. Mas também não estou a legitimar a autêntica explosão que eclodiu nas redes sociais por algo tão residual, especialmente quando há notícias que deviam merecer mais atenção, nomeadamente o mais recente escândalo deste Governo em relação à nomeação do procurador europeu. São notícias de acontecimentos lamentáveis? Sim. Merecem ambas o mesmo tempo de antena? Não.

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Quanto à “manif” que se passou em Coimbra, sendo eu não só alumni, mas também um liberal que sabe a dor que é estar “no centro” em Coimbra, reservo alguns comentários a propósito. Primeiro, acho que há aqui falhas na análise (aliás, há ausência de análise, porque se houvesse uma efetiva análise estas coisas considerar-se-iam). Abordando o fenómeno do Chega, é particularmente pertinente observar um elemento que falta ser encarado, que é o elemento psicológico. Nomeadamente o de alguém que se sente marginalizado.

Reparem, uma das características que define o Chega é o populismo e isto nota-se quando se observa uma mixórdia de ideologias entre os seus militantes (mixórdia de tal ordem, que André Ventura teve de enfiar uma provisão nos quadros do Chega, basicamente para impedir que os seus militantes se insultem gratuitamente, não vá o partido acabar porque ninguém se consegue ver à frente). De facto, nota-se que o Chega aglutina gente de inúmeros quadrantes, desde monárquicos, comunistas, sociais-católicos, anarquistas e até sociais-democratas. O que nos ajuda a deduzir que são pessoas que sentem que não têm voz. Reparem também nos elementos discursivos do Ventura (não analisando as propostas políticas dele, apenas medindo as palavras que ele escolhe em entrevistas). A mensagem que ele quer passar é uma mensagem de que há portugueses que se sentem profundamente injustiçados, há portugueses que são excluídos do sistema, há portugueses a quem lhes calhou uma mão má no baralho da vida.

Antes de continuar, quero só deixar aqui uma nota de rodapé e dizer que acho Ventura perigosamente brilhante. Ele é bem mais inteligente do que o fazem parecer e, ao fazê-lo, estão a subestimar o adversário. Uma postura altamente errada, primeiro, porque vão acabar por encará-lo desprevenidos e, segundo, porque acaba por ser contraproducente. Lá está, porque só alimentam a frustração dos que constantemente se sentem subvalorizados. Disse uma vez e digo até ao fim, André Ventura não acredita em metade das coisas que diz. O fenómeno do Chega é única e exclusivamente um instrumento de projeção de Ventura. O líder do Chega “analisou o mercado”, viu um nicho que não estava a ser explorado e resolveu dar oferta onde havia procura, ponto final.

Continuando, tenho sérias dúvidas que “manifs” deste género façam mais do que dar satisfação pessoal a quem nelas participa (porque precisam de um canal por onde escoar a sua raiva ou indignação). O backlash disto é bifurcado: primeiro, quem já faz parte do fenómeno tem a sua raiva interior alimentada e justificada porque mais uma vez se sentiu agressivamente excluído e isso é a prova de que o que tem de fazer, é multiplicar os esforços defensivos e ofensivos (portanto, estão só a meter mais carvão na fogueira); e segundo, quem não assumia simpatia pelo Chega, quer por estar na dúvida, quer por “timidez”, pode sentir que esta é a derradeira rejeição social que serve de gota de água para, abertamente, apoiar e contribuir para o fenómeno (e voilà, Ventura ganha mais palco e outro candidato mais moderado acaba de perder mais votos). Ulteriormente, o que estas coisas acabam por fazer é erguer muros entre os extremos. Como consequência erode-se a hipótese de haver entendimentos ao centro. E se não há entendimentos, alimenta-se simplesmente um conflito perpétuo.

Extrema-direita todos sabemos o que significa, mas falta a capacidade para definir “extrema-esquerda”e cá vai a minha tentativa de definição: A extrema-esquerda é uma corrente axiológica culturalmente marxista que, como qualquer versão extremada de qualquer ideologia, faz enquadramentos sociais segundo definições de “nós contra eles”, assumindo com isto a posição de “bonzinhos”. Geralmente, como em qualquer versão extremada, procura exemplos minoritários e transforma-os em generalidades através da sua argumentação. Enquanto isso, empoderando-se do topo do pedestal moral, formulando todas as suas posições com o pretexto da empatia, que mais nenhuma outra posição tem, mais uma vez porque “nós” é que somos os bonzinhos e consequentemente donos da moral.

O que se tem vindo a assistir é a uma progressiva ruptura social, quer nos Estados Unidos, Reino Unido ou no Brasil, e Portugal parece estar a seguir na mesma via. Muito se discute nas redes sociais (e talvez estas também estejam no hipocentro de todos estes fenómenos sociais, mas isso é uma outra conversa ) sobre a extrema-direita porém, segundo as sondagens, nem a direita toda unida consegue igualar o PS, quanto mais a esquerda toda. Vale a pena relembrar à extrema-esquerda que os fins nem sempre justificam os meios.

Eu e qualquer estudante de Coimbra sabe que a sede do PSD (de direita moderada) está constantemente a ser vandalizada. A esquerda precisa mesmo de reavaliar a sua estratégia porque, usar banalmente a palavra “fascista” ao ponto de ela perder o significado, e usar as barbaridades ditas por meia dúzia de “incels“, ou pessoas “lixadas com a vida”, para a sua própria propaganda, enquanto se intitula, simultaneamente, dona de toda a moral social, não é uma boa estratégia.

A consequência é alienar a direita moderada, que podia muito facilmente estar do lado da esquerda moderada em termos gerais. O que se tem visto é uma progressiva divisão da sociedade, estando os moderados a ser esmagados de ambos os lados. A esquerda moderada é rotulada de “sistémica” e “conformista”, enquanto que a direita moderada é rotulada de “idiota útil” ou automaticamente “fascista”. E haverá ainda outra consequência à qual vou cunhar com o termo “ressublimação política”: ressublimação, que em química significa a passagem direta do estado gasoso para o sólido e que no caso concreto, aplicado à política, define uma reação tão agressiva contra algo que eram apenas partículas dispersas, que acaba por provocar a consolidação do Chega.

Por mais bem intencionados que sejam, se não houver um “centro” a resolução pacífica de conflitos será praticamente uma ilusão. Entretanto, divirtam-se a mostrar o quão “woke” são, mas no futuro não digam que não foram tão responsáveis quanto eles pelo escalar de tensões. Estão lançadas as sementes do narcisismo moral.