Em 2019 um grupo político de extrema esquerda espanhol – Arran – vandalizou veículos de rent-a-car como forma de protesto contra as ondas de turismo em massa. Ora, não é que eu seja propriamente apologista de movimentos políticos radicais, mas este caso de há quatro anos atrás é indicador de um problema sobre o qual vale a pena refletir.

Em declarações concernentes aos atos de vandalismo por si conduzidos, o Arran afirmou no Twitter que (parafraseando) “o turismo faz de Espanha uma vitrine para inglês ver” e “a onda de turismo em massa é a causa de saturação de serviços, insustentabilidade ambiental, e poluição”. Isto não é propriamente mentira, afinal o Arquipélago Balear em Espanha já se encontrou incapaz de fornecer água potável a todas as ilhas durante a época alta do Verão.

Nos Estados Membros da União Europeia em geral, e em Portugal em particular, que dependem do turismo como setor económico, ninguém se atreve a morder a mão que os alimenta. E se o alimento dessa mão não é bom para a nossa saúde?

Observando estatísticas europeias, notamos que os Estados Membros onde o turismo é um setor mais importante para o PIB são também os Estados Membros com menor PIB per capita ajustado ao poder de compra. Assim, está mais do que na hora de nos questionarmos se o setor turístico nos está a condenar à pobreza.

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A grande maioria dos empregos gerados pelo setor turístico são empregos com baixos salários, que não requerem mão de obra qualificada e, crucialmente, empregos onde a margem para inovação é muito diminuta. Para uma economia crescer, a inovação é central, e mão de obra qualificada é essencial para estimular essa inovação.

Dado que a quantidade de pessoas cujo emprego depende do setor turístico é enorme nos Estados Membros do Mediterrânico (e em Portugal representando mais de um quinto da população ativa), não é de todo razoável atacar o setor turístico de forma bruta e frontal.

É também importante reconhecer que os Estados Membros do Mediterrâneo não se deixaram envolver na armadilha do setor turístico intencionalmente. O setor turístico foi central na recuperação económica destes países em períodos de aperto, como nas décadas de 70/80 do século passado e na de 10 do século atual. Contudo, há uma distinção importante sobre o impacto do setor turístico nestes países na comparação destas duas décadas. Em primeiro lugar, nas décadas de 70/80 do século passado a maioria da população destes países era não qualificada e a população residente beneficiou principalmente porque àquela data a remuneração no setor turístico suportava o custo de vida confortavelmente e em particular comparativamente aos tempos atuais. Em segundo lugar, o boom turístico inicial suportou o desenvolvimento económico com a construção de restaurantes, apartamentos, hotéis, inúmeros negócios locais e, por sua vez, oportunidades de emprego para a população local.

Esta estratégia de desenvolvimento figurou-se à época como ideal para o crescimento económico. Não requiria que os trabalhadores investissem em percursos universitários, não exigia uma grande intervenção financeira pública nem de Investimento Direto Estrangeiro para capacitar o país para essa indústria – estes países já eram turisticamente atrativos por natureza.

O cerne da questão, portanto, não é que o setor turístico seja inerentemente mau para o desenvolvimento económico, mas antes que este setor não é um motor de crescimento económico progressivo. Há um limite até ao qual a indústria turística pode contribuir para um continuado desenvolvimento não só em termos económicos mas também em termos sociais e de qualidade de vida.

Mais do que uma armadilha séria, é sintomático de economias demasiado dependentes do mercado não transacionável. Para uma economia não ficar dependente do mercado não transacionável é necessário inovar e produzir vantagens competitivas. É difícil inovar e encontrar vantagens competitivas no setor turístico. Não se podem comprar praias melhores para cobrar mais aos banhistas nem há propriamente forma de inovar a maneira como trazemos pasteis de nata às meses das nossas esplanadas. Basicamente, será progressivamente mais difícil gerar mais lucro do que aquele que presentemente se gera com turismo.

O pior, e é por este motivo que o setor turístico é o protagonista deste artigo – ao invés do mercado não transacionável em geral – é que a indústria do turismo pode seriamente qualificar-se como um impedimento ao desenvolvimento de outras indústrias mais benéficas para a saúde económica dos Estados Membros Mediterrânicos. Mas como?

Existe um fenómeno económico conhecido como Dutch Disease. Dutch Disease é um paradoxo económico. A tradução literal é “Doença Holandesa” porque em 1959 os Holandeses encontraram uma vasta reserva de gás natural na sua costa. Contra-intuitivamente isto provocou não só uma inflação do Florim (a moeda Holandesa pré-Euro) como também um aumento do desemprego de 1.1% para 5.1%, bem como uma queda acentuada de Investimento Direto Estrangeiro no país.

O aumento acentuado de exportações de gás natural não só baixou a competitividade de todos os produtos holandeses não relacionados com a indústria petrolífera, como também dificultou a exportação de bens devido à inflação monetária, por sua vez extra-territorializando mão de obra qualificada nos setores não-petrolíferos, e importando um excedente de mão de obra não qualificada para sustentar o boom da recém emergida indústria petrolífera.

Desde então Dutch Disease veio a definir o paradoxo de uma coisa muito boa num setor mas que afeta negativamente a generalidade da economia de um país. Regra geral este fenómeno aplica-se em países muito ricos em algum recurso natural, o que provoca um fluxo massivo de investimento estrangeiro nesse setor específico, uma inflação monetária, fuga de cérebros, e perda de empregos para outros países.

Isto é aplicável ao caso concreto do impacto que a indústria turística tem nos países da Europa Mediterrânica por um fator não diretamente aplicável ao caso Holandês. Este fator é que os países mais ricos em recursos naturais tendem a ser países pobres justamente devido ao Dutch Disease – vejam-se os exemplos da Venezuela, rica em petróleo, ou de países sub-saharianos, ricos em recursos minerais. Quando um país se foca tanto num setor específico não só perde competitividade em todos os outros setores como também fica altamente dependente das flutuações e impactos desse setor específico.

Na Europa Mediterrânea não há uma abundância de petróleo, mas há uma abundância de praias, paisagens e património cultural – cujas características oferecem uma comparação interessante face às características de recursos naturais pelos efeitos colaterais que têm na economia de um país.

Alguns economistas, especialmente em Espanha, já se debruçaram sobre esta “Dutch Disease Turistica”, apurando conclusões inquietantes. Claramente, quanto maior o número de turistas, maior serão os beneficios para a indústria turística. No entanto, não só o emprego gerado por turismo tende a ser temporário por natureza, como também não compensa o decréscimo de empregos noutros setores mais estáveis – ou seja, perdem-se mais empregos noutros setores do que aqueles que se ganham no setor turistico. Em termos técnicos, turismo não é um “net-job creator”. A razão principal já foi aqui mencionada, nomeadamente devido ao setor turistico não ser um setor com grande margem para inovação, não sendo propício a efeitos cascata com outras indústrias nem economias de escala. Entre outras razões podemos ver que muitos jovens escolhem adiar percursos académicos e profissionais em troca de dinheiro rápido – isto é preocupante visto à luz de indicadores de desistência académica em regiões dependentes do turismo.

Adicionalmente, além de paralelos económicos existem também paralelos políticos. Em países afetados por Dutch Disease tendencialmente abundam também casos de corrupção política relativos a negócios desses mesmos recursos. Ora, o que não falta na Europa Mediterrânea são casos e casinhos de algo conhecido como “corrupção urbana”. Nas zonas turísticas destes países é muito fácil encontrar exemplos de corrupção na forma de subornos e comissões em troca de favores políticos que permitem ou aceleram permissões ou autorizações para a construção e/ou especulação imobiliária. Espanha é um exemplo de um país que foi mais afetado que o esperado quando rebentou a bolha imobiliária de 2008, justamente por estes casos e casinhos de corrupção urbana.

Tendo exposto os efeitos nefastos do turismo para a economia, vale a pena também incorporar alguma nuance nesta análise. Da mesma forma que há países pobres ricos em petróleo, há também países ricos que são ricos em petróleo – o mesmo se aplica ao turismo. A título de exemplo, França, Inglaterra, Nova York, California, e Dubai, são regiões onde o turismo pesa em torno de 10% do PIB (20% no caso do Dubai). Isto leva-nos a entender que há países que gerem melhor o setor turistico que outros, o que naturalmente suscita a pergunta: o que é que Londres, Nova York, Paris, e o Dubai fazem que o Algarve, Lisboa, e os Arquipélagos não fazem?

A grande diferença é o tipo de turismo existente. O turista médio nestes países gasta imenso dinheiro: vai a lojas de luxo, frequenta museus, assiste ao teatro, à ópera, e a concertos. Essencialmente, é um tipo de turismo que contribui significativamente para a economia, destribui-se em vários setores (luxo, cultura, moda), e contribui como hub de turismo e networking empresarial em simultâneo. Quando comparamos com a Europa Mediterrânica, notamos imediatamente o contraste. O turista médio na Europa Mediterrânea é o chamado “Turista de Sol e Praia”. É um turista que procura poupar em todas as despesas. Além do alojamento, muitas vezes prefere fazer compras no supermercado mais próximo para poupar na alimentação, e procura oportunidades baratas em qualquer despesa que tenha. E como passa a maior parte do seu tempo em zonas balneares (inerentemente gratuitas) não contribui para o enriquecimento de outros setores económicos.

O tipo de Turismo que realmente contribui com efeitos cascata é um turismo com significativa margem para inovação e competição. Há como investir em mais e melhores peças de teatro, concertos e capital cultural; há como investir na concentração de um setor de luxo; há como investir na criação de um hub de moda; e há como investir na fixação de restaurantes com estrelas Michelin, onde a despesa consegue atingir 5 mil euros numa só refeição.

Em jeito de conclusão, é preciso referir que fazer a transição para um tipo de turismo mais benéfico para a nossa saúde económica não é impossível, para isso serão necessárias políticas que facilitem simultaneamente a atração de um tipo de turista diferente, bem como a criação de um ambiente empresarial que possa elevar as ofertas que este tipo de turista procura. Não obstante, por mais que seja verdade que essa transição é possível, não acontecerá da noite para o dia. Mas crucialmente, dar passos no sentido dessa transição é essencial, mais não seja por forma a reconhecer que continuar a investir no turismo, nomeadamente na forma de Sol e Praia, é um beco sem saída.

É vital não perder o foco desta análise. Quando um país se foca tanto num setor específico não só perde competitividade em todos os outros setores como também fica altamente vulnerável às flutuações e impactos desse setor – como se viu no contexto da pandemia que nos asfixiou durante 2 anos. Numa conjuntura de crise demográfica, de fuga de cérebros, de imigração de jovens qualificados, de importação de mão de obra não qualificada para preencher empregos de baixos salários que geram pouca inovação e desenvolvimento, é francamente preocupante a continuada insistência no investimento no setor não transacionável em geral, e em turismo em particular; não só olhando para a Europa Mediterrânica e o estagnar económico de motores tradicionais da economia da União Europeia, como Itália e Espanha, como também para Portugal especificamente, que tende exibir os valores mais preocupantes no que toca à dependência do setor não transacionável e em particular do setor turístico.