Com o nascimento de Jesus nascem três ‘ideias’ fundamentais, as quais são para os Católicos objecto de fé. Tais ideias, aparentemente muito beatas para alguns, transformaram-se, ao longo de muitos séculos, em princípios basilares do liberalismo.

A primeira ‘ideia’ fundamental é anterior ao nascimento do próprio Jesus: Maria, sua mãe, é mãe de Deus. Theotókos / Mater Dei – uma mulher, totalmente humana, ser mãe do próprio Deus é a mais antiga e extraordinária forma de valorização do ser humano. A crença na possibilidade de Deus nascer no seio de um ser humano tornou o Catolicismo único entre todas as outras religiões. É aqui, neste facto da fé, incompreensível à razão, que nasce a valorização extrema do ser humano, princípio fundamental do liberalismo.

A segunda ‘ideia’ fundamental é naturalmente a Encarnação de Deus num homem em tudo igual aos outros seres humanos. Tal facto, também ele incompreensível à razão, distingue, mais uma vez, o Catolicismo. Jesus é em tudo igual aos outros seres humanos, excepto no pecado. A tentação, perigosa, de atribuir a Jesus pelo menos um ou outro poder extraordinário, bem cedo assolou o Catolicismo. Ao ponto de a Igreja ter declarado o monofisismo como heresia: Jesus nasceu, viveu e morreu com todas as limitações próprias do ser humano – o corpo funcionava como qualquer outro, e tal como todos os seres humanos providos de razão tinha ‘palavras duras’ para os cobradores de impostos (Evangelho de São Lucas, 19 1-10).

A terceira ‘ideia’ fundamental que Jesus traz é precisamente a do perdão: todos e todas, prostitutas e cobradores de impostos, são perdoados. A ideia de perdão, que nasce com Jesus e que os Católicos celebram na Páscoa, festa da redenção, é absolutamente extraordinária. Ao ponto de a Igreja Católica nunca ter arrogado para si o direito de declarar a condenação ao inferno de um único ser humano. Porque tal declaração seria, de facto, uma declaração de suprema arrogância: é Deus quem perdoa, e o poder absoluto de Deus manifesta-se no perdão e não na condenação do ser humano. Desta ideia fundamental, a do perdão, nasceu, historicamente, o papel institucional da Igreja Católica. A Igreja não nasce para exercer poder, mas para ser intermediária entre o indivíduo e Deus. Nada mais.

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O facto mais notável da história do Catolicismo é que o povo de Deus nunca esqueceu as três ideias fundadoras da sua religião: Maria, mãe em Jesus de todos os seres humanos; Jesus, cujo nascimento nos torna a todos iguais; e o perdão de Deus, em Jesus, que é para todos. A Igreja, contudo, enquanto instituição, por vezes esqueceu que o seu papel era, e é, estar entre o indivíduo e Deus, e não estar entre o indivíduo e o Estado. Sempre que a Igreja esteve entre o indivíduo e o poder temporal, quer a Igreja, quer o indivíduo perderam. Curiosamente, é precisamente quando o liberalismo ganha força enquanto movimento político, que a Igreja está num dos seus ‘picos de esquecimento’ do seu papel institucional. No século XIX o liberalismo apresentou-se amiúde como reacção ao poder institucional da Igreja, ao seu conservadorismo e à sua resistência ao avanço da ciência. As contradições aparentes entre o liberalismo e a Igreja durante o século XIX tiveram como um dos seus principais efeitos a perda da memória histórica: é hoje em dia mais fácil argumentar que Jesus foi o primeiro socialista do que associar os três eixos da fé Católica mencionados acima com o liberalismo.

O liberalismo, enquanto ideia que centra tudo no indivíduo, nasce com o nascimento de Jesus. Foi a Igreja quem, na expressão feliz de Larry Siedentop, inventou a ideia de indivíduo (‘pessoa’, para o leitor mais beato). A Igreja não inventou certamente o ateísmo colectivista que resulta do socialismo.

Para Deus não existem colectivos, mas sim pessoas/indivíduos: cada indivíduo, na sua história singular, é revelação do amor de Deus e do seu perdão. Por isso somos todos iguais para Deus, mas profundamente diferentes. Somos na verdade desiguais, e é nessa desigualdade que está o nosso valor individual. Jesus encarnou como um indivíduo com uma história singular. Jesus encarnou no singular, não no colectivo.

No nascimento de Jesus verificamos um movimento extraordinário que começa com a valorização do humano na Encarnação, a importância da história singular de cada um visível na própria história singular e irrepetível de Jesus, e que termina com a ideia de perdão enquanto manifestação da ideia de que as histórias pessoais, porque são singulares e irrepetíveis, são também feitas de falhas. O centro da fé Católica reside neste movimento interno, o qual gera indivíduos diferentes, desiguais, mas únicos e, por isso mesmo, com valor infinito enquanto pessoas individuais. Isto é: o centro da fé Católica é precisamente o centro do liberalismo enquanto movimento filosófico, político, económico e, principalmente, ético.