Os meus primeiros Natais foram ao sol. Em dias quentes, longos, com o mar em frente à casa e a casa cheia. A cozinha num alarido de odores. Embrulhos coloridos, em esconderijos descobertos pela curiosidade mas em que não ousava tocar não fosse adivinhar o que estava dentro e perder a surpresa. Eram dias de festa. Celebrava-se Jesus.

Mudaram muitos os Natais desde essa vida que já parece outra, num continente construído de memórias intercaladas. Ficaram desse mundo dois ou três livros da Anita onde ainda oiço a voz da minha avó e me revejo perdida na beleza dos desenhos. Ficou o cheiro das fatias douradas e do caramelo, líquido, a solidificar em cima da bancada de pedra, em círculos perfeitos presos num palito. Ficou, perdido por entre os livros, o mapa dos Caminhos de Ferro de Benguela, por onde viajo em dias de nostalgia.  Abro-o com cuidado para não rasgar e sigo com o dedo uma das linhas. Vou do Lobito ao Huambo, de janela aberta, a cara coberta de pó. Fecho a janela, agasalho-me. Espero que me sirvam chocolate quente e bolachas de manteiga a caminho de Hogwarts, sentada no banco ao lado do meu filho. Ou preparo-me para sair,  aos dezoito anos, de mochila às costas, a meio do deserto de Atacama. Ficou, dos Natais de infância, a certeza de poder partir de uma pequena estação de caminhos de ferro e percorrer todas as possibilidades do mundo.

Natal é isto. O renascimento da alma. A possibilidade de se voltar à viagem que não foi feita, de nos perdermos na memória carregada de ficheiros, e reencontrarmos os sabores descobertos na infância. A alegria de se ser celebrada e amada à chegada. Ser feliz sabendo que se é.

Neste Natal, depurado de excessos, voltámos ao essencial. À celebração do amor. Em que outra época se viveu tão intensamente a necessidade de estar perto?

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