Vem este texto a propósito do muito que se vai lendo e ouvindo por aí sobre os casos de Portugal e da  Suécia, cujas autoridades sanitárias e governamentais adoptaram, como é sabido, atitudes diametralmente opostas no que concerne às medidas de protecção das respectivas populações.

Portugal adoptou medidas bastante rígidas de confinação da totalidade da população, com medidas muito restritivas e controlo efectivo sobre as justificações para sair de casa, como é sabido, tendo sido apontado como um caso exemplar face aos resultados que iam aparecendo, o que levou, inclusivamente, Marcelo Rebelo de Sousa, com o exagero e devoção que se lhe conhece, a falar em milagre, registo que ainda mantém apesar das evidentes falhas.

Já a Suécia, cuja autoridade sanitária, com poderes de decisão nestes casos, que não o Governo, optou por recomendar às populações os cuidados habituais para casos de surtos típicos de Inverno – basicamente cuidados de higiene e distanciamento, confiando no tradicional espírito cívico e responsável das suas populações. O país tem sido muito criticado por ter adoptado esta atitude, quando na generalidade dos casos, quase todos os países seguiram, com nuances, as recomendações oriundas da Organização Mundial de Saúde, de confinamento geral das populações, coisa nunca vista até agora.

Os defensores do confinamento, incluindo a generalidade dos “especialistas” destas áreas, têm usado a experiência sueca como exemplo do que não devia ter sido feito e, por vezes, com exagero e má-fé, apontam a Suécia como um autêntico desastre e mesmo de gestão “criminosa” desta crise. Anseiam por ter razão e amplificam a mortalidade que se vai verificando por lá, acima do esperado mas, mesmo assim, não pior do que a de outros países europeus que adoptaram estratégias bem mais rígidas e parecidas com as nossas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ora eu, não sendo especialista, venho apenas trazer-vos alguns dados estatísticos sobre os casos português e sueco (países de dimensões populacionais muito idênticas, ambos com pouco mais de 10 milhões de habitantes), essencialmente para tentar trazer alguma objectividade à comparação que se faz e questionar as reais virtudes ou defeitos de cada uma das vias seguidas.

Ao longo da minha vida profissional activa trabalhei em Portugal numa empresa sueca durante quase 20 anos (entre 1981 e 2000) e tive oportunidade de conviver com muitos quadros suecos, quer em Portugal quer na Suécia para onde viajei inúmeras vezes e onde permaneci mais de 500 dias seguramente.

Agora, passados mais de 20 anos, dou comigo a reflectir um pouco sobre o convívio com aquele povo, à luz da minha experiência, e face aos autênticos ataques algo descabelados que têm sido feitos à forma como os suecos abordaram a crise pandémica e têm lidado com a situação.

Os suecos, na minha perspectiva, são um povo adulto, cívicamente responsável, disciplinado e dificilmente aceitariam um confinamento obrigatório, como o que nos foi imposto, sem justificações fortes para tal. Basta dizer que por lá cabe à autoridade sanitária definir as medidas a adoptar, comunicá-las, justificá-las convenientemente e esperar que sejam cumpridas na generalidade. Talvez esta abordagem não resultasse por cá e, se calhar por isso, nos tivessem sido impostas medidas rígidas, o que demonstra quão longe estamos de ser um povo maduro, autónomo e independente da autoridade paternalista do Estado. Diga-se, em abono da verdade, que o governo até foi lento a tomar medidas que o povo, assustado com as notícias catastróficas, amplificadas pela comunicação social que se pratica por cá e que vinham chegando de Itália e Espanha, “exigiu” que fossem tomadas.

Numa primeira fase, e perante o desconhecido, foi o que pareceu mais correcto e necessário a todos e por isso foi fácil “ficar em casa”. Mas passadas duas semanas, já se tinha percebido quais eram os grupos de risco e quais os menos atingidos e não foram sendo tomadas medidas coerentes com o evoluir da informação. Preferiu-se manter todos em casa sem que fossem adoptadas medidas selectivas e activas em função quer dos ditos grupos de risco, quer dos restantes grupos. E a economia foi fechada coercivamente.

Ainda hoje isso não parece estar claro na comunicação da Direcção Geral de Saúde e do Ministério da Saúde, que sistematicamente vão decretando medidas avulso, erráticas e muitas vezes inconsistentes e incoerentes. É o que se chama navegação à vista e sem rumo certo. E Portugal, antes um “caso exemplar” passou a ser um “caso banido” para já como origem e destino seguro, a par, precisamente da Suécia. A inconsistência nas medidas e a caça aos gambozinos com testes em massa a populações indiferenciadas que não as constituintes de grupos de risco mantém-se e temos números significativos de novos casos, sem doença nem sintomas, mas que legitimam a manutenção da mensagem do medo, ao mesmo tempo que o número de doentes internados bem como o número de óbitos vai diminuindo e tendendo para zero.

Será que mantêm a ilusão de que um dia vão encontrar zero casos nos testes efectuados, quando é muito provável que, à medida que se vai adquirindo imunidade de grupo isso será cada vez mais um facto?

A título de exemplo e para perceberem do que falo e das diferenças culturais e cívicas dos suecos, conto-vos três pequenos episódios:

Na primeira visita a uma fábrica do grupo na Suécia, e como era usual, o colega com quem iria trabalhar foi apanhar-me ao hotel a caminho da fábrica. Ali chegados ainda cedo e apesar de ter nevado durante a noite, estacionou o carro no parque, mas bem longe da porta de entrada da fábrica, apesar de haver muitos lugares de estacionamento livres mais próximos. Estranhei e indaguei o porquê desta decisão, pois não me pareceu que houvesse lugares marcados. A resposta foi reveladora: “Os lugares mais próximos da entrada ficam para os retardatários”. E lá andámos 200 a 300 metros até à porta da fábrica. Em Portugal isto seria difícil de suceder.

Noutra ocasião, em Junho, por estes dias que antecedem o solstício de Verão que eles comemoram rumando até ao círculo polar ártico para assistirem ao sol da meia noite, viajei com um grupo de cinco pessoas onde se incluía um sueco. Após uma conferência anual da companhia realizada precisamente a Norte, tivemos a oportunidade de tirar uns dias extra, viajando com guia e acampando, mas sem roteiro pré-definido. Por lá, no meio das florestas de coníferas, os núcleos habitacionais são escassos e pequenos pelo que quem queira meter-se ao caminho tem de levar provisões para dois, três dias. Dorme-se à beira dos trilhos, havendo indicações de distâncias a percorrer entre os abrigos simples, de madeira, com espaço para meia dúzia de pessoas pernoitarem aconchegadas no saco cama e uma lareira com alguns utensílios apropriados para ferver água, fazer um chá e pouco mais. Uma sauna tradicional, aquecida através do fogo da lareira e a circulação de água é também habitual. Por perto haverá um curso de água, que servirá para nos refrescarmos à saída da sauna, que em Junho, em pleno degelo, tem muitas vezes um caudal respeitável. Estes abrigos na floresta estão à disposição do viajante e prontos para recebê-lo. Caso chegue tarde e cansado da caminhada, pode estar certo que encontrará lenha cortada para acender a lareira e mantê-la acesa durante toda a noite. É este o pormenor que, se calhar por cá, também não funcionaria. Antes de partirem, os caminhantes deixam o lugar limpo e arrumado como o encontraram, repõem o stock de lenha consumida -com uma ou duas serras manuais e um machado também disponíveis -, reabastecem os depósitos de água e registam e comunicam, quer anomalias encontradas, quer a sua identificação e contactos. Este é o ponto sobre o civismo e responsabilidade dos suecos perante os outros.

Um terceiro caso ilustrativo da “mentalidade” sueca, que foi notícia há bem poucos dias, foi a decisão da empresa IKEA em devolver aos diferentes países as ajudas recebidas a título de compensações relacionadas com a crise pandémica. Qual a empresa portuguesa que estaria disponível para tomar uma decisão destas?

Por isso talvez ainda tenhamos algo a aprender com eles e, no mínimo, devíamos dar-lhes o benefício da dúvida. Se assim actuaram, lá terão as suas razões  e não serão gratuitas ou totalmente destituidas de sentido.

Pela minha parte, continuo a respeitá-los e a considerá-los!

Mas vamos aos números da “catástrofe sueca” e do “milagre português” em tempos de Covid-19.

As fontes estatísticas suecas no que diz respeito à mortalidade diária, não são actualizadas tão automaticamente como as nossas que, para quem não sabe, estão disponíveis a cada 10 minutos, baseando-se nas certidões de óbito eletrónicas. Pena é, que estas sejam escassas quanto à causa de morte registada, o que inviabiliza análises de outro tipo.

A Suécia, embora da mesma dimensão populacional de Portugal (eles com 10096493 e nós com 10197880 habitantes de acordo com o site WorldOmeter) tem um registo de mortalidade anual um pouco inferior ao nosso, o que deve ter explicação numa pirâmide etária menos envelhecida do que a nossa.

No período dos cinco anos anteriores, a Suécia registou uma taxa de mortalidade anual de cerca de 0,9% (calculada para uma população estática ao longo dos 5 anos), tendo-se verificado uma queda para 0,87% no ano passado. Este ano, entre 1 de Janeiro e 7 de Junho esse registo subiu para 1,02% em consequência da pandemia do Covid-19.

Se quisermos ir um pouco mais longe e desdobrarmos a mortalidade deste ano em dois períodos, um entre 1 de Janeiro e 15 de Março (período pré-Covid-19) e outro entre 16 de Março e 7 de Junho, verifica-se que a Suécia registou no primeiro período uma quebra de óbitos face ao esperado, de cerca de 1583 casos, e um excesso de 4850 casos no período Covid-19. A mortalidade Covid-19 para o mesmo período é de 4659 (96%) óbitos (site WorlOmeter, já atrás referido). Ou seja, a Suécia considera e reporta a mortalidade inesperada, reconhecendo como causa próxima a crise Covid-19. Este é um dado significativo, a ter em conta quando comparado com Portugal.

Portugal regista uma taxa de mortalidade média de 1,09%/ano (calculada sobre uma população estática ao longo dos últimos 5 anos) contra 0,90% da Suécia e também um aumento desta no período terminado em 7 Junho. Se formos mais longe, verificamos, como no caso da Suécia, uma quebra da mortalidade face ao esperado, entre 1 de Janeiro e 15 de Março, de 1663 óbitos e um aumento, também face ao esperado, de 3275 óbitos no período de 16 de Março a 7 de Junho.

O agravamento em termos de mortalidade no período Covid-19 na Suécia é superior ao nosso. Eles com 4850 casos a mais e nós com 3275 (67,5%). A grande diferença face ao que se especula, é que para eles a quase totalidade dos excessos tem como causa próxima a Covid-19, enquanto nós, dos 3375 excessos apenas reportamos 1474 (45%) nos mapas Covid-19. E isto faz toda a diferença, quando apenas nos servimos dos dados dos dados do site WorldOmeter e tiramos conclusões apressadas sobre as duas realidades, nomeadamente para defender os sucessos “indiscutíveis” do confinamento rígido adoptado em Portugal, face à política laxista adoptada pelos suecos. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.

Os dados apresentados mostram que a Suécia tem um registo de óbitos na época Covid-19 superior ao nosso, mas ele não pressupõe, para já, que uma diferença tão significativa possa ser justificável, pura e simplesmente pelas diferentes estratégias seguidas. Por enquanto, e se apenas compararmos Portugal e a Suécia, face aos números conhecidos, em termos de excesso de mortalidade, a estratégia de confinamento foi mais eficaz pelo menos no imediato. Mas se olharmos para outros casos vizinhos, que também adoptaram o confinamento das populações como estratégia, a Suécia sai vencedora.

Uma outra comparação dos quadros de mortalidade entre países serve-se dos z-scores (z-score = número de óbitos-valor esperado), que comparam as mortalidades verificadas com as mortalidades esperadas, medidas em número de desvios padrão/desvio padrão. Quanto maior o z-score, maior é o impacto interno sentido no país; quanto maior o desvio padrão médio, menor o z-score.

Assim, o impacto da mortalidade excessiva em cada país por comparação com outros, mede-se, não em termos absolutos ou per capita das diferentes populações, mas em termos do impacto relativo em cada uma delas. Pelo quadro abaixo podemos observar que Portugal tem um desvio padrão médio sensivelmente o dobro do sueco, pelo que para um mesmo valor absoluto de óbitos em excesso teria um z-score sensivelmente de metade. Traduzindo por miúdos, o impacto interno de uma mesma mortalidade excessiva será tanto maior quanto menor for o desvio padrão.

Pelo quadro abaixo verificamos que na Suécia, onde a mortalidade é baixa nos períodos gripais, com pouca flutuação diária e com desvios padrão mais baixos que os nossos, a mortalidade excessiva do período Covid-19 tem sido mais impactante para eles do que para nós, que com menos óbitos em excesso e maiores desvios padrão, quase não sentimos um forte resultado.

É o que pode ver-se perfeitamente nos gráficos abaixo, retirados directamente do site European Mortality Monitoring Project. A Suécia regista um histórico bastante estável das mortalidades médias diárias ao longo dos anos, com z-scores dentro do esperado, com poucos picos gripais e daí os seus valores mais baixos dos desvios padrão históricos. Portugal, pelo contrário, ao registar ciclos gripais mais significativos, regista desvios padrão mais elevados e daí absorver a mortalidade excessiva provocada pela Covid-19 de uma forma quase imperceptível, mesmo inferior à dos surtos gripais de 2014-15, 2016-17, 2017-18 e 18-19 e muito comparável ao último de 2019-20.

O eixo dos y dá-nos a dimensão em termos de número de desvios padrão registados. Até 4 (linha vermelha) considera-se dentro do normal. Acima deste ponto há uma crise. À direita vê-se bem o impacto lá e cá.

Mesmo que tivéssemos tido um excesso de óbitos em termos absolutos semelhante ao da Suécia, o nosso z-score seria, sensivelmente, metade face ao nosso histórico em termos de desvio padrão, pelo que estes gráficos, como outros, devem ser interpretados com os devidos cuidados.

A Suécia disponibiliza ainda um quadro de análise da mortalidade Covid-19 associada à existência de eventuais co-morbilidades, o que se traduz numa boa base de trabalho para a necessária prevenção de riscos no futuro. O nosso sistema de registo de óbitos é bastante mais expedito e actualizado, mas peca  por falta de alguns detalhes no registo online das certidões de óbito, ao atirar quase tudo para a causa “morte natural”, sem mais. Uma área a melhorar rapidamente, pois sem boa informação não há base sólida para melhorar.

Em jeito de conclusão, ainda que provisória pois, apesar de ser ter passado a fase aguda da pandemia, pelo menos ao nível europeu, continuam a registar-se novos focos de incêndio aqui e ali e não é ainda tempo de dar o caso por encerrado:

O debate sobre a eficácia das políticas agressivas de confinamento não está terminado, nem tão pouco o das políticas relaxadas optadas pela Suécia. Mas parece evidente que as autoridades, umas e outras, deverão ter aprendido alguma coisa e estar mais preparadas para novas vagas que possam acontecer; e umas e outras, para adoptar políticas seguras de protecção dos mais vulneráveis, essencialmente dos maiores de 70 anos e entre estes, os doentes ou com co-morbilidades.

A estatística sueca confirma, claramente, que são os mais velhos e com uma ou mais co-morbilidades, os mais atingidos pela mortalidade em caso de novos surtos:

  • 90% dos óbitos atingiram pessoas com mais de 70 anos
  • 51% destes padeciam de doenças cardíacas
  • 80,9% padeciam de hipertensão
  • 27,9% tinham diabetes
  • e 13,8% tinham doenças pulmonares
  • apenas 13,3% não sofriam de outras doenças
  • 27,2% registavam pelo menos uma das doenças acima
  • 59,5% tinham entre duas a quatro destas doenças em simultâneo

Em resumo, os mais atingidos situavam-se nos grupos etários acima de 70 anos e, destes, 86,7% já padeciam de uma doença debilitante.

Em Portugal, apenas sabemos que o grupo etário dos maiores de 70 anos contabiliza 86,5% dos óbitos atribuíveis ao Covid-19 e não existe qualquer informação adicional sobre as co-morbilidades mais significativas.

Conclusão: nem a Suécia é, para já um completo desastre, nem Portugal se aproxima de um milagre. Basta olharmos para uma série de países como a Áustria, Roménia, Hungria, República Checa, Grécia, por exemplo. Muito há a explicar quando a espuma dos dias Covid-19 se dissipar, até porque a política de confinamento exagerado no tempo, a meu ver, provocou estragos económicos, cujas consequências vão perdurar por anos e, eventualmente, também com consequências ao nível da mortalidade futura. Veremos.