Em 20 de Outubro realizaram-se eleições presidenciais na Bolívia. O presidente em funções desde 2005, Evo Morales, do MAS – Movimento para o Socialismo, concorreu pela quarta vez a um mandato de 5 anos. Segundo a Constituição do país, não poderia candidatar-se de novo, mas, não se conformando com essa limitação, tentou removê-la da lei.
O referendo convocado em 2016 para esse efeito não lhe deu essa alegria, mantendo a impossibilidade de se candidatar. No entanto, apesar de a iniciativa do referendo ter sido sua, Evo Morales não se conformou com o resultado, tendo apelado para o Tribunal Constitucional. A decisão deste tribunal foi inédita: o impedimento em relação à quarta recandidatura, previsto na Constituição e mantido pelo referendo, era contrário à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada na Costa Rica em 1969, abrindo assim a hipótese de nova candidatura de Evo Morales. Esta decisão causou enorme indignação e suspeita junto da população, expressa através de manifestações e greves gerais durante o ano de 2016.
No entanto, nada demoveu o presidente socialista Evo Morales de se recandidatar em 2019. Teve como candidato principal o liberal Carlos Mesa, que já tinha sido presidente durante um curto período, entre 2003 e 2005. A segunda volta era previsível. Navegando em modo de normalidade, algumas horas após o encerramento das urnas, os resultados que iam saindo confirmavam com clareza a esperada segunda volta. Eis que, para espanto dos observadores internacionais e da população, o Supremo Tribunal Eleitoral suspendeu a contagem de votos sem qualquer justificação relevante. Um dia depois, já em modo de total anormalidade, reabriram os serviços eleitorais com o anúncio da vitória de Evo Morales logo na primeira volta. Sem necessidade de uma segunda. O candidato vencedor teria obtido uma diferença de 10,57% de votos em relação ao segundo candidato, quando a lei eleitoral exige um mínimo de 10% e mais de 40% dos votos totais. Curto mas simples.
Tão evidente é a fraude que, desde o anúncio dos resultados, têm ocorrido sem cessar manifestações, greves e bloqueios de estradas em todo o país. Com feridos e mortos. Parece que os observadores internacionais sul-americanos, que também não gostaram do que tiveram oportunidade de assistir, conseguiram convencer o partido do presidente ainda em funções a realizar uma auditoria à contagem dos votos. Mas deixaram de fora desse processo o candidato Carlos Mesa, inexplicavelmente. Não se prevê assim que algo de bom, algum remédio, possa surgir desta auditoria. Mas enfim… há que ter alguma esperança, sem ser ingénuo.
Depois de tudo isto e ainda sem saber aonde vão parar Evo Morales e Carlos Mesa, o que é que podemos salientar no que se está a passar na Bolívia? Em primeiro lugar, a prática habitual dos órgãos de soberania – presidentes, governos, parlamentos, tribunais – contra as leis internas, incluindo as leis constitucionais. Nem vale a pena falar do direito internacional. É um ataque que se dirige essencialmente contra as leis eleitorais e as que incidem sobre nomeações para cargos políticos. Numa primeira fase, dedicam-se à discreta nomeação de magistrados para os tribunais superiores, para a investigação e acusação criminal, para as Forças Armadas, para dirigentes dos principais órgãos da administração pública, da administração eleitoral e da comunicação social estatizada.
Conseguindo, com maior ou menor eficácia, atingir esses fins, passam para uma fase mais complexa, que tem em vista a alteração das leis que limitam a duração dos mandatos e dos poderes dos cargos que ocupam.
Os três mandatos de Evo Morales tiveram tudo isto e terminaram com uma enorme originalidade, em resposta a um referendo que não lhe correu bem. Os argumentos do Tribunal Constitucional sobre a igualdade de tratamento e de garantia do exercício dos direitos políticos individuais, com base na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que não é divergente, nesta matéria, de outras convenções internacionais do mesmo tipo, como a Declaração Universal e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, abre um precedente para qualquer político em funções poder interpretar as normas internas nacionais naquele sentido. Ou seja, que não existem limites temporais para o exercício dos seus mandatos, que se pode chegar ao poder e ficar lá até ao fim dos seus dias. Fazendo prevalecer absolutamente a sua vontade sobre os direitos de todos os outros cidadãos.
Nem Nicolas Maduro se tinha lembrado disto. Nem Cristina Kirchner. Nem Lula da Silva, nem Dilma Rousseff.
Por cá, não temos sabido quase nada da Bolívia pela comunicação social. Apenas ligeiras e intermitentes referências a um tema que não suscita o superior interesse das redacções. Para compensar, vamos recebendo toneladas de informação sobre os dislates do “inimigo americano” e agora também sobre a vida diária do homem que se atreveu a correr com o PT do Planalto, no Brasil. Mas sobre a Bolívia ou o recente regresso ao passado na Argentina, está a passar por aqui uma nuvem. É pena.
Para aprofundar estes temas sugere-se a companhia musical do “Hotel Fraternité” do Arnaldo Antunes e “Bye Bye Bad Man” dos Stone Roses.