“Vamos ter muitas saudades da Senhora Merkel”.

Esta frase, com ligeiras variações, foi repetida por muita gente durante todo o ano de 2021, antes e depois das eleições na Alemanha, até à tomada de posse do novo governo. Por vezes com um suspiro no fim. Surgia invariavelmente quando se discutia uma crise qualquer, num país qualquer, com um governante qualquer, dando a entender que na Alemanha, com e por causa da Chanceler Angela Merkel, as coisas não eram assim.

A frase completa não tem muita profundidade, nem é sequer fundamentada. Parece valorizar mais a postura e a imagem que os media transmitem de Merkel do que justificar a saudade, a falta que se previa que iria fazer na política alemã e no resto do mundo. O grande vazio que iria nascer.

Porque talvez não se possa justificar. Contabilizando, há mais decisões erradas e silêncios da ex-Chanceler Angela Merkel durante a sua governação de 16 anos do que a resolução de problemas e a definição de rumos para o seu país e para a Europa. Em bom rigor, o que ficou mais saliente na sua governação foi a seriedade, que nunca foi aliás questionada, felizmente, e também o reconhecimento dos seus pares.

Viajando 16 anos para trás, desde 2005 até final do ano passado, o resultado é até muito sombrio e não vai deixar saudades. Porquê? Em primeiro lugar, por simples esquecimento, como uma consequência natural da sua longevidade no cargo, mas sobretudo e também por causa de decisões e comportamentos profundamente errados, como os que a seguir se descrevem.

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(i) Como constante do seu mandato encontramos sempre a gestão dos silêncios, que, podendo ser considerada, numa primeira observação, como ponderação e reflexão, é também reveladora de características de defesa e de reserva, adquiridas naturalmente por quem cresceu e viveu quase até aos 35 anos na RDA de Honecker e da Stasi, uma das mais brutais ditaduras comunistas do pós-guerra. Em vez da transparência e da facilidade de comunicação, temos o recolhimento e a tomada de decisões apenas após medição cautelosa do sentido da opinião pública alemã. Valorizando os medos e o sentimento de culpa nacional, mais interiorizado do que revelado.

(ii) Em 2011, após o tsunami que atingiu a central nuclear japonesa de Fukushima, Angela Merkel recolheu para ponderar e, apesar de a Alemanha não ter qualquer historial sísmico grave, decidiu encerrar as centrais nucleares no país. Decisão incompreensível, baseada no medo e no calculismo político, na medida em que retirou espaço aos Verdes Die Grünen e ao seu crescimento eleitoral. A primeira consequência foi o retorno às centrais de carvão, as quais defende, agora, que devem também ser fechadas. Isto significa que, ao tentar, tacticamente, reduzir o espaço dos Verdes, apontou na direcção errada e criou um problema gigantesco para a Alemanha, que já está a ter consequências na União Europeia, especialmente na divergência com a França, que não prescinde – e bem – da energia nuclear, mas também com as recentes decisões que a República Checa e a Roménia tomaram a respeito da criação de centrais de energia nuclear de nova geração, com tecnologia financiada maioritariamente pelos Estados Unidos e por privados.

(iii) Em 2015, alguns anos após a rejeição de qualquer auxílio a Itália e Grécia durante a vaga de migrantes que atingiu a Europa através desses países, dá uma volta completa e aceita receber um milhão de pessoas na Alemanha, promovendo depois um acordo com o presidente da Turquia, Recep Erdogan. Nesse acordo, que foi um dos piores legados que deixou aos seus sucessores e a toda a Europa, a Turquia assumiu a tarefa de contenção dos migrantes no seu território, usando os meios que entendesse necessários, contra o pagamento de um preço astronómico saído do orçamento da União Europeia. Claro que a humanidade que quis exibir quando recebeu um milhão de migrantes não esteve presente quando sugeriu e acordou pagar este preço para que outros, bem longe, construíssem muros e montassem acampamentos miseráveis e definitivos.

(iv) Pouco antes de Barack Obama ser substituído por Donald Trump na presidência dos Estados Unidos, é organizado em Novembro de 2016 um jantar em Berlim, no famoso Hotel Adlon, numa sala com vista para as portas de Brandenburgo. O presidente americano e a então chancelar da Alemanha queriam sinalizar – mediaticamente, sempre mediaticamente – uma passagem de testemunho na condução da política do Ocidente. Só que, Obama, a quem tudo correu mal nas relações internacionais, não tinha nada para oferecer. E Merkel também não devia querer receber nada, apenas o testemunho numa virtual corrida de estafetas ou o fumo de uma liderança.

(v) Depois de ter promovido em 2014 a nomeação do luxemburguês Jean-Claude Juncker como presidente da Comissão Europeia, conhecendo bem as suas incapacidades e, portanto, a sua futura inexistência no cargo, em 2019 decide finalmente apoiar um cidadão alemão para o cargo. A presidente Ursula von der Leyen largou a pasta da Defesa do seu governo e mudou-se para Bruxelas em Novembro de 2019. No meio da maior crise institucional da União Europeia, com blocos de interesses nacionais inconciliáveis, não teve praticamente tempo para respirar. A pandemia de Covid-19 atacou em força três meses depois e deixou-a sem rumo definido. Mas não sem antes ter apresentado no Parlamento Europeu um programa-pastel chamado European Green Deal, tentando assim abranger todas as tendências ideológicas e nacionais existentes no Parlamento Europeu que contavam para a aritmética da sua própria eleição. Como não é possível agradar a todos ao mesmo tempo, não agradou a ninguém e o Deal vai seguramente ficar enterrado nas prateleiras das bibliotecas europeias, traduzido em mais de vinte línguas. Dois anos depois, a COP26 de Glasgow veio exibir cruelmente a irrelevância do peso global da União Europeia e do seu Green Deal, face à posição hesitante dos Estados Unidos e à ausência e falta de acordo da China, Índia e Brasil.

(vi) Também é de recordar a teimosia de Angela Markel a respeito do Nord Stream 2, o gasoduto alternativo que, com o seu traçado pelo Mar Báltico, compromete toda a Europa perante a Rússia, excepto a Alemanha. Este projecto, entretanto concluído e pronto a entrar em funcionamento, foi negociado em russo com Vladimir Putin, à frente de toda a gente – e nem os repetidos avisos dos Estados Unidos e da França conseguiram tirá-la do silêncio. É incompreensível e talvez inexequível esta opção da Alemanha de Merkel e, por isso, o problema passou para o novo chanceler Olaf Scholz, do SPD, que terá agora de repensar tudo e tomar uma decisão que tenha em consideração os vizinhos europeus e a política de distribuição de energia a nível global. Certamente contrária àquela que Merkel desenhou e tentou aplicar.

(vii) A posição de Merkel a respeito das relações com a Rússia parece ter ficado congelada nos tempos da Ostpolitik de Willy Brandt, como se a RDA e a União Soviética ainda existissem. Neste campo, o último acto falhado foi um contacto pessoal com Lukashenko, um criminoso internacional que desvia aviões comerciais, para tentar resolver os problemas com os migrantes na fronteira da Bielorrússia com a Polónia. Esta inciativa, no sentido contrário de todas as outras que estavam em curso, causou uma enorme fragilidade negocial à Polónia e aos restantes parceiros europeus, tendo servido apenas para promover Lukashenko na comunidade internacional, mais uma vez com o sonoro, mas invisível, aplauso de Putin.

No ano da saída de Angela Merkel, a Europa está muito pior do que em 2005, num impasse tão profundo que já nem se fala dos seus problemas estruturais, financeiros ou estratégicos. E se, apesar de tudo, a Alemanha assumiu durante este período uma liderança relutante, as causas desta situação não podem deixar de cair principalmente em cima da ex-Chanceler.

As saudades de Merkel são de facto um enorme lugar-comum, fácil para uso de políticos superficiais e com pouca visão, cinzentos e sempre reverentes para com os mais fortes. E cabe em dois ou três minutos na televisão, sem grandes explicações. Tempo esse que não seria suficiente para recordar e elogiar os grandes chanceleres do pós-guerra que deixaram saudades e exaltam o papel da Alemanha e os alemães na Europa e no Mundo e que são apenas dois: Konrad Adenauer, que fez a reconstrução, e Helmut Kohl, que fez a reunificação com a RDA. De Angela Merkel ninguém se vai lembrar com um lenço lacrimal na mão.

Para acompanhar a leitura deste artigo: “The Steps”, HAIM.