Conseguíssemos nós retirar a retórica e o foguetório dos discursos e proclamações das decisões políticas e teríamos surpreendentes consensos. Pelo que se vai vendo, há mais ideologia num “sound byte” de 15 segundos feito para os telejornais do que nas 300 páginas de cada orçamento anual. Direita e esquerda têm dito coisas muito diferentes e mostrado enormes divergências. Mas são mais aparentes do que a prática mostra. Até porque percebemos coisas distintas quando a direita e a esquerda defendem ou aplicam a mesma coisa.

Exemplos não têm faltado. Senão, vejamos.

A direita pode propor e aprovar um imposto sobre o património imobiliário mais elevado que não é suspeita de uma deriva ideológica contra a acumulação legítima de riqueza. Foi isso que fez o anterior governo com o Imposto do Selo, sem que a medida levantasse polémica. Mas quando um governo de esquerda avança com imposto semelhante só podemos temer pelas intenções que lhe estão na origem. Sobretudo quando o deixa anunciar por um partido de extrema-esquerda no meio de um discurso a defender a mudança de regime económico, na tal linguagem que o próprio António Costa disse depois não ser a do PS.

A esquerda pode aprovar ordenados de mercado para a administração do banco público que está apenas a fazer a defesa da competência e a remunerá-la devidamente. A direita não pode, porque está a promover as desigualdades e a desbaratar recursos públicos. E o contrário também é verdadeiro. Se a direita quer travar ordenados elevados no sector público está a ser populista. Se for a esquerda, é uma medida decente de uma sociedade que ser quer ainda mais decente.

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Se a direita corta despesa corrente do Estado está a destruir os serviços públicos, a degradar a Educação, a Saúde ou os transportes que são uma das conquistas de Abril e uma obrigação democrática. Já a esquerda não faz nunca cortes de despesas, antes faz cativações. E estas são benignas e só demonstram responsabilidade na gestão orçamental.

Com o investimento público passa-se mais ou menos a mesma coisa, mas o argumento já nos coloca mais no médio e longo prazo. Se é cortado pela direita é uma sanha ideológica contra o Estado e o seu papel no país, é uma visão miserabilista que vai causar danos no nosso desenvolvimento. Se os cortes são feitos pela esquerda são uma absoluta necessidade dados os constrangimentos orçamentais, porque é preciso fazer opções.

A esquerda não pode sujeitar a atribuição das pensões não contributivas à verificação da real necessidade dos beneficiários porque está a destruir o Estado social e a contrariar a sua génese socialista e redistributiva. A direita pode e deve fazê-lo porque o bom senso e a responsabilidade financeira do Estado a isso aconselham.

Do mesmo modo, um governo de esquerda pode fazer alterações nas regras da segurança social que possam aumentar a idade da reforma, subir as contribuições ou reduzir as pensões a pagar que está apenas a proteger o sistema público. Mas se for a direita a fazê-lo está simplesmente a entregar a segurança social a privados.

Se a direita carrega mais nos impostos indirectos está a prosseguir uma política fiscal cega, já que estes são pagos por igual por ricos e pobres. Se esse aumento é feito pela esquerda, essa regressividade deixa de ter importância e valoriza-se antes que não se aumentem ou se reduzam os impostos sobre os rendimentos, que são progressivos e têm uma função redistributiva acentuada.

Quando a esquerda faz tudo para cumprir os objectivos do défice está a ser responsável e a honrar os compromissos europeus. Quando é a direita, estamos de joelhos perante Bruxelas e a senhora Merkel.

A lista podia continuar. Da injecção de dinheiro dos contribuintes para salvar bancos até o fim da Contribuição Extraordinária de Solidariedade para pensões acima dos quatro mil e tal euros por mês enquanto não há dinheiro para aumentar as mais baixas acima dos 0,7% previstos para a inflação.

Claro que a natureza do mensageiro é uma componente importante de qualquer mensagem. Mas o que estamos a verificar é que as clivagens ideológicas estão quase todas no discurso e muito menos nas opções orçamentais concretas, sejam elas de esquerda ou de direita. Os Estados falidos nunca são um bom sítio para se projectarem modelos de sociedade. São sítios sem opção, onde se vive para pagar a dívida que vence amanhã e onde a aritmética é rainha. E a aritmética, como sabemos, não tem ideologia.

Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com