Durante os tempos da diabolizada Ditadura salazarista, sendo eu jovem estudante no Liceu, era frequente vermos alguns colegas não participarem nas aulas de Religião e Moral. A maioria de nós, independentemente das nossas convicções pessoais, olhava para eles com a íntima admiração que se tributa às pessoas que se atrevem a enfrentar o statu quo. Bastava aos seus encarregados de educação preencher um formulário a pedir dispensa de tais aulas sem mais explicações que a não-aceitação dos princípios morais católicos. Muitos provinham de meios anticlericais, outros de famílias protestantes. Protegida pela Constituição de 33, era uma medida regulamentar normal e uma praxis serenamente aceite.

Hoje, diz-se que vivemos em democracia. Mas a democracia não pode ser apenas um tag de marketing, uma moralidade de conveniência que encaixa bem no léxico «autorizado». Não podemos esquecer que a essência da soberania do povo assenta na liberdade, no direito de expressão tolerante e plural, na institucionalização do contraditório, no reconhecimento da dignidade humana sem discriminação de idade, raça, classe social, sexo ou ideias políticas. Se na equação do problema nos quedarmos apenas em falaciosas questões de forma, ficaremos vulneráveis perante o relativismo político e a demagogia.

Lembrei-me disto a propósito da saga de uns pais que viram dois dos seus filhos arbitrariamente punidos com perda administrativa de dois anos escolares apenas por se recusarem a assistir a aulas de endoutrinamento ideológico camufladas por detrás da eufemística designação de Cidadania e Desenvolvimento, o catecismo da nova religião. Pelos vistos, para o governo, o direito de objecção de consciência previsto na Constituição de 76 não é para levar a sério. Confesso que para mim o assunto não é novo pois já me tinha confrontado com ele na ES Pedro Nunes há uns anos quando um dos meus filhos foi ameaçado com a mesma medida se persistisse em se recusar a assistir às aulas da chamada Educação Sexual. Com um Conselho Directivo dominado por militantes LGBT, não tive a coragem que estes pais têm tido e o assunto acabou por se esvanecer quando o meu filho decidiu anular a matrícula.

No meio da nossa vivência burguesa, ditada pelo individualismo e pelo «sucesso social», muitas pessoas entendem que cada um tem de safar-se como puder e que estes casos são mero ruído que nada afecta o evoluir natural das sociedades. Para elas, situações destas são apenas uma árvore da floresta. E recusam-se a ver os sintomas da crescente doença que irá inevitavelmente afectar todas as outras. Se os veios de água da Liberdade que alimentam a nossa plantação social forem conspurcados ou cerceados todos iremos sofrer com isso mais cedo ou mais tarde.

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Recentemente, tivemos o acosso de 67 «académicos» que, qual alcateia, se lançaram sobre a liberdade de expressão e investigação de um colega. Com efeito, têm vindo a aumentar os tiques totalitários e autocráticos nos vários quadrantes da vida portuguesa, desde os meios de comunicação social às várias instâncias do poder estatal, passando pelas autarquias, fazendo muitas vezes lembrar o PREC de 1974-75. A oligarquia supremacista, que hoje reúne sem pudor o mais selvático capitalismo especulador com a mais radical turbamulta, promove uma agenda política rupturista sem qualquer suporte democrático, baseada no velho princípio animador das minorias revolucionárias de que «são eles que sabem o que é melhor para o povo». E, como temos constatado, sem Venezuelas não haveria Salgados e sem Salgados não haveria Sócrates.

As modas progres são apresentadas como inelutáveis sinais dos tempos e, de repente, sem nos apercebermos, a democracia transforma-se em dogmacracia. É evidente que na relação de linguagem e pensamento há muito que se abandonou o comportamento de fair play tão característico do positivismo lógico. Por isso, desconstruir a função da linguagem como instrumento chave na implantação do pensamento totalitário é preocupação de muitos pensadores, como Hannah Arendt, Raymond Aron – ou o Orwell dos últimos anos e, de forma particularmente incisiva, em 1984. Orwell estava consciente do poder quase hipnótico das palavras e de como se apoderavam do nosso pensamento passivo ou inerte. Para ele, o resultado final era o empobrecimento da língua, isto é, da competência comunicacional, e a perda da liberdade com a consequente anulação da capacidade crítica e de resistência. Para que, mais facilmente, o machado totalitário pudesse cortar a raiz ao pensamento…

Há 14 anos, em Espanha, um juiz que, num processo de adopção de menores, se atrevera a solicitar uma peritagem de estabilidade psíquica a uma parelha lésbica (não pela sua orientação sexual mas pela vulnerabilidade que pressentira, como explicou) foi de tal modo achincalhado que por causa dessa campanha acabou expulso da magistratura. Os interesses do bebé, no meio do acosso ideológico, foram totalmente apagados pela mediatização do «direito» de um casal homossexual a adoptar (que ninguém pusera em causa). Ora, há dias, o casal divorciou-se e a adoptada, agora adolescente, acabou entregue aos cuidados dos serviços da Segurança Social. Nos mesmos órgãos de comunicação social que há 14 anos, de forma tão empolgada, participaram na campanha contra o juiz Ferrín Calamita, o silêncio foi agora ensurdecedor.

Por cá, perante este escândalo dos estudantes (Tiago e Rafael) de Famalicão, por onde anda Marcelo? Sempre tão pronto em distribuir afectos e partilhar selfies, por que nada comenta sobre este angustiante atropelo à liberdade? Que diz o insigne mestre de Direito perante o emaranhado de decisões arbitrárias que cada vez mais aproxima a praxis legislativa de uma pantomima de justiça? Nada. Mas ou muito me engano ou este tema dos dois alunos chumbados dogmaticamente pelo Ministério chamado da Educação vai ser tema vital na campanha eleitoral para a Presidência. Em nome da Liberdade.