Os últimos tempos pandémicos trouxeram algumas mudanças. Subtilíssimas formas de mudar para que tudo fique na mesma. Deve sublinhar-se o desaparecimento estratégico de alguns dos mais altos responsáveis da saúde que, sejamos justos, até mereciam descansar. Menos falam, menos asneiram. É bom. Agora temos tido a não menos nauseante “ministra de tudo” — Roquentin compreenderia — a assumir as despesas da comunicação COVID, com o cinzentismo próprio do tema e o conformismo desculpabilizante de que desta vez é que há mesmo alguém que não percebe nada do assunto a comunicar medidas avulsas, abstrusas e contraditórias. A “nouvelle vague” nas conferências de imprensa. Arte pura. Não estou a ser irónico. A representação a que a Senhora se presta é de grande artista.

É certo que o Presidente da nossa Assembleia teve um deslize de quem é entusiasta da bola, não tão grave como quiseram pintar se atentarmos no capital de disparates que lhe podem ser atribuídos, e o nosso Presidente da República lá veio meter água na fervura explicando que Ferro não tinha dito o que disse, sendo que na política o silêncio vai do ouro ao tonitruante.

Um ponto é certo, continuamos sem instrumentos legais próprios para gerir e fazer aplicar as medidas adequadas ao controlo de uma pandemia. Bem se podem esforçar com os critérios das leis de proteção civil e de saúde pública, mas a verdade é que em ambos os casos o desenho do articulado e as incidências constitucionais não foram feitas a pensar numa pandemia. Note-se que esta, a da COVID-19, não é a primeira nem será a última.

Chegados aqui, toda a estratégia de “desconfinamento” que até nem era má de todo baqueou quando confrontada com a necessidade de “reconfinamento.” Ninguém se lembrou da realidade de que nem tudo corre de igual forma em ambos os sentidos. As medidas de controlo de uma pandemia não são necessariamente iguais no sentido de encerrar ou abrir. Não é uma torneira que funcione em dois sentidos. O dromotropismo epidemiológico, ainda para mais quando o agente infecioso é mutável e os condicionalismos populacionais de risco mudam, não é igual no sentido da expansão de casos ou na sua contenção. Nem os indicadores utilizáveis são necessariamente os mesmos. Simplificando, o que eu digo resume-se a que não se entende a cerca sanitária à região de Lisboa, no tempo, na frequência de “fim-de-semana” e no modo como foi imposta. Uma inutilidade. Em contexto de controlo de transmissão de doença infeciosa é aceitável, na falta de melhor, encerrar as pessoas nas suas casas. Na sequência dessa medida extrema, mesmo não havendo vacinação ou quimioprofilaxia universais, é aceitável, logo que possível, proceder ao alívio das medidas de restrição à liberdade de movimentos. Esse alívio pode ser faseado. Mas, havendo recrudescimento dos casos, só com controlo efetivo das cadeias de transmissão, com isolamentos forçados de indivíduos, famílias ou outros grupos, é que se consegue interromper a expansão da pandemia. Medidas como encerrar restaurantes a partir das 15h30 aos fins de semana ou encerrar as lojas mais cedo são ineficientes, economicamente disruptivas e meramente cansativas. Na forma como têm sido usadas e apresentadas, configuram “punição”.

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O Senhor Presidente da República, nada isento de também já ter dito algumas asneiras, tem razão quando afasta a possibilidade de novos estados de emergência. Di-lo porque quer e espera que o governo já tenha tido capacidade de se organizar, em termos das medidas de saúde pública, nomeadamente com rastreios consequentes, para prevenir a emergência de novo pico pandémico. Acima de tudo, o Professor Marcelo espera que o SNS já tenha adquirido capacidade para responder, sem risco de rutura, a nova procura intensa de cuidados hospitalares, incluindo em unidades de intensivos.

Nesta fase, além de se fazerem testes com fito e racionalidade a que se seguirão medidas de acompanhamento e confinamento de positivos, é crucial que a vacinação avance. A campanha de vacinação em Portugal não tem sido um êxito. Tem sido o que pode ser em função das vacinas disponíveis. Só é êxito na medida em que tem sido possível injetar as vacinas que nos vão chegando. Uma mera questão logística que se concretiza apenas pelo esforço dos profissionais de saúde que têm dado o melhor de si e vão faltando para outras tarefas em que também são necessários.

O senhor do camuflado, o “gajo duro” que faz capa, também lá vai dizendo umas coisas que não deveria dizer. Não lhe nego os méritos organizacionais, pese embora as diferenças entre navegar submerso, rodeado de gente cuja submissão ao comando pode ser a chave da sua própria sobrevivência, e a vida na superfície, na “espuma” do SNS. No caso das vacinas supostamente mal dadas a jovens num ACES do Porto poderá ter havido uma violação de protocolo, um erro de juízo clínico ou uma boa medida de gestão de excedentes. Não sei, ainda não sabemos. O que estou certo é que não vinha a propósito que tivesse afirmado, em traje mais próprio para combate no mato do que para uma operação sanitária, “impiedoso com malandros”.

Malandrices à parte, o facto é que os 70% de população vacinada adiaram-se de agosto, onde já seria tarde, para setembro ou outubro. Entretanto, pelo que sei, o Reino Unido está quase a conseguir vacinar metade da sua população 18 aos 29 anos, os tais que os “malandros” quiseram vacinar, exatamente aqueles que são agora os principais propagadores de SARS-CoV-2. Enfim, são os militares que o dizem, não há nenhum bom plano que resista ao contacto com o inimigo. Não se responde à realidade com irritação e ameaças.

Como todos sabemos, não se emagrece à velocidade que se engorda. O processo de resolução da pandemia vai ser lento e complexo, sistematicamente a necessitar de adaptação. Não se pode lidar com a situação epidémica com pânico ou medidas desproporcionadas e de elevado custo social. Ganhámos tempo e é preciso usar o tempo ganho. Será fundamental evitar medidas de meias tintas, como fechamentos de fim de semana, e apostar naquelas com ganho maior, como vacinar e usar prevenção secundária de forma eficiente, bem diferente do apelo a testagem a todo o vapor. Precisamos de mais e melhor acompanhamento domiciliário dos casos positivos, de maior critério na avaliação de doentes com infeções respiratórias, de manter a capacidade de internamento em todo o sistema de saúde e não apenas no SNS. Não podemos repetir a monumental asneira de fechar o acesso ao sistema de saúde para os doentes sem COVID-19. Não é possível repetir as tolices cometidas em torno de eventos desportivos. Nem é desejável que os agentes políticos na União Europeia continuem a perder o seu tempo e o nosso com acusações mútuas de desleixo.

Esperemos que o tempo quente que se aguarda nos ajude a conter esta e outras infeções respiratórias. Estejamos atentos ao que o governo tem dito, com propriedade, acerca da planificação de campanhas de vacinação em 2022 e 2023. Confiemos, que outra coisa não podemos fazer, em que a vacina para a gripe sazonal de 2021/22 não vai faltar. Não devemos desistir das máscaras, ainda que ao ar livre possam ser excessivas, porque usá-las sempre é garantia de não nos esquecermos delas quando forem mesmo imprescindíveis. Mais do que testar, testar, testar, com resultados epidemiológicos desperdiçados por falta de acompanhamento subsequente, vamos continuar a lavar, lavar, lavar, afastar, afastar, afastar e, se a providência nos der essa faculdade, aguentar, aguentar, aguentar, o fascínio com que a comunicação social alimenta narcisismos e os excessos de estupidez que o vírus nos trouxe.