O acesso ao ensino superior assenta num pressuposto antigo: é preciso filtrar porque nem todos têm condições para frequentar com sucesso o ensino superior. Foi assim que no pós-revolução surgiu o famoso numerus clausus que durante anos polvilhou os pesadelos dos alunos que chegavam à porta do Acesso. Entretanto adotou-se o termo “vagas” mudando um pouco o pressuposto: já não uma questão de elitismo, apenas não existe capacidade suficiente para todos, passando os alunos a terem nos seus pesadelos a ansiedade provocada pela possibilidade de não terem espaço num ensino que lhes dizem ser imprescindível para poderem ter “sucesso na vida”. Associado às vagas surgiu a nota de candidatura que completava a nova lógica do acesso com a noção de mérito.
Entretanto, a rede de oferta foi crescendo, e crescendo, e, neste momento, a rede tem uma capacidade de oferta de 55.000 vagas para uma população candidata de 60.000 alunos onde cerca de 10% dos alunos que ficam colocados não chegam a realizar a matrícula. E onde existem muitos alunos que são candidatos, mas já frequentam uma Instituição de ensino superior. Há uns largos anos a esta parte que já não é uma questão de “filtragem” nem uma questão de “capacidade”. É uma questão de concorrência entre instituições e concorrência entre alunos. Procurando ser-se o curso com mais procura e procurando ser admitido nos cursos com mais procura. Em linha com a sociedade que temos vindo a desenvolver onde tudo se resolverá se formos suficientemente competitivos para sermos os melhores.
E atualmente é a “média de acesso” que sobrevoa nos pesadelos cada vez mais prejudiciais para a saúde mental dos nossos alunos que se encontram à porta do acesso. E o mais grave é que eles não chegam à porta do acesso unicamente no final do ensino secundário. A porta do acesso coincide praticamente com o início da escolaridade básica. Estamos quase numa situação onde o único ciclo de ensino que não se organiza em função do acesso é o ensino pré-escolar.
É importante a procura da melhoria e o reconhecimento do mérito. De procurarmos hoje ser melhores do que éramos ontem. Sempre. De ultrapassarmos as resistências internas e externas e procurar sempre níveis superiores naquilo que fazemos. Sejamos nós uma instituição de ensino, um aluno do ensino secundário, ou do ensino superior, ou mais especificamente no nosso dia a dia como seres humanos. O problema é que a obsessão com a “competitividade” deixa-nos presos a indicadores que não refletem (totalmente) a realidade que se pretende melhorar e tira do nosso campo de atuação uma outra força muito mais poderosa em termos de evolução: a “colaboração”. Mas voltemos ao acesso.
A média de acesso ao ensino superior é construída com um peso enorme nos exames nacionais que se constituíram ao longo dos anos como o grande instrumento de gestão do acesso. E os exames, com o seu peso esmagador no sistema de ensino, são os grandes condicionadores das aprendizagens ao longo do ensino básico e secundário. E os grandes limitadores dos objetivos da flexibilidade dos currículos e do desenvolvimento das chamadas competências fundamentais para a sociedade do século XXI. Tendo uma posição muito crítica sobre o peso esmagador que os exames têm em todo o sistema de ensino, não me revejo na proposta que é apresentada pelo governo de retirar os exames das notas de conclusão do ensino secundário e de aumentar o seu peso nas notas de candidatura. Porque não resolve o problema que pretende resolver e cria um outro.
Por um lado, sendo positivo o princípio de distinguir o processo de conclusão do ensino secundário do processo de acesso ao ensino superior, ao manter para efeitos de acesso ao ensino superior os exames como o grande instrumento de avaliação do aluno, mantém a pressão negativa sobre os alunos e mantém o condicionamento sobre a flexibilidade das escolas e professores. Por outro lado, ao retirar os exames da conclusão do ensino secundário, retira o único instrumento que o sistema tem para regular as avaliações realizadas pelas escolas. Abrindo assim a possibilidade de que existam inflacionamentos artificiais nas classificações dos alunos.
É verdade que a retirada dos exames para efeitos de conclusão do ensino secundário diminuí os efeitos perniciosos dos rankings das escolas, mas retira também um instrumento importante na avaliação externa dos estabelecimentos de ensino. Se não forem criados outros instrumentos de avaliação externa, para substituir o potencial que os exames têm em termos de diagnóstico dos resultados das escolas, estas ficam ainda mais prejudicadas em termos de informação disponível para suportar os seus processos de decisão na procura da melhoria dos resultados de aprendizagem dos seus alunos.
Esta proposta do Governo retira os exames do sítio onde eles ainda apresentam algum tipo de benefício e vai mantê-los onde eles apenas são prejudiciais. Perde-se assim mais uma oportunidade de mudar o paradigma de acesso ao ensino superior.
Quando se decidir olhar com atenção para o número de candidatos que, sendo já alunos do ensino superior, voltam a candidatar-se no ano seguinte, assim como para o número de alunos que abandonam o ensino superior durante o primeiro ano, perceber-se-á que o sistema suportado exclusivamente em exames está completamente desajustado. Sem mobilizar as próprias Instituições do ensino superior para este processo não é possível termos um sistema de acesso adequado às necessidades dos alunos de hoje. Atualmente, o papel das instituições de ensino superior é meramente passivo. Aguardam pacientemente pelo sábado em que são publicadas as classificações elaboradas pela Direção-Geral do Ensino Superior e abrem as suas portas na segunda-feira seguinte para receber os alunos que lhes foram atribuídos. Não sabem nada sobre esses alunos. Apenas a classificação que estes tiveram e a “média” que fica atribuída aos seus cursos num jogo mediático de “esgotámos/não esgotámos as vagas”.
Reestruturar o acesso ao ensino superior de modo a termos um instrumento que permita que os jovens frequentem a instituição de ensino superior e o curso que mais se aproxima dos seus interesses e gostos, conjugado com uma gestão equilibrada da rede de ofertas onde exista a necessária regularização da frequência de determinados cursos, implica:
- que os alunos se apresentem às potenciais instituições apresentando-lhes diretamente a sua candidatura;
- que as instituições de ensino superior desenvolvam e apliquem os seus instrumentos de diagnóstico das características e competências dos alunos que a elas se candidatam, decidindo sobre quais os candidatos que melhor se ajustam aos objetivos dos cursos que proporcionam.
Naturalmente que este processo não pode ser operacionalizado nos meses de julho e agosto antes do ano letivo começar em setembro. Implica sim, que durante o ano letivo anterior exista envolvimento e atividades dos alunos potencialmente candidatos a frequentar o ensino superior no ano letivo seguinte e que as instituições de ensino superior criem estruturas, e mobilizem recursos, para o desenvolvimento e aplicação dos referidos instrumentos. É necessário um acesso que olhe para o aluno como individuo e que otimize a afetação aluno-curso de modo a termos pessoas mais felizes nas escolhas que fazem e consequentemente mais preparadas para contribuírem para uma sociedade mais equilibrada e justa a todos os níveis.