Quando era miúdo, perturbava-me especialmente o evangelho do Domingo de Ramos quando se dá início à Semana Santa, sobre a agonia de Jesus no jardim de Getsémani, depois da Última Ceia. Afastado dos apóstolos em amargo diálogo com Deus Pai, afundado em dúvidas, a angústia foi tão profunda que, segundo São Lucas “o seu suor tornou-se em gotas de sangue a cair sobre a terra.” Na minha família, no modo possível numa casa com cinco crianças quase da mesma idade, os meus pais tentavam incutir alguma sobriedade pelo menos a partir de Sexta-feira Santa – a televisão apagada ajudava bastante. Lembro-me então de tentar pôr-me no lugar d’Ele, sabendo que estava prestes a cumprir o seu destino de morte da cruz, para que se cumprissem as palavras dos profetas, não sem antes ser atormentado, não só pela tortura física que ia ser sujeito em todo o processo, mas pela brutal humilhação cometida pelos poderosos de Jerusalém que estava destinado a enfrentar. O próprio “Escolhido”, em que Deus pusera “toda a Sua complacência” estava profundamente só e mortificado como estaria um homem comum. O meu pai explicara-me certa vez que o número de 29 chicotadas era definido assim na tradição romana como o limite do castigo físico, para que a vítima não morresse antes da pena estar completa, tal era o sadismo do aviltamento. Mas o que me perturbava mesmo eram aqueles momentos de solidão profunda em que Jesus parece querer resistir ao seu destino, aparenta perder as forças junto da meta estabelecida, dirigindo-se ao Alto: “Meu Pai, se for possível, afasta de mim este cálice” (Mateus 26:39). É então que, nessa enorme aflição, terá sido consolado por um Anjo (Lucas 22:43). Mais tarde, quase adolescente, tocou-me especialmente a canção “Gethsemane (I Only Want to Say)” em “Jesus Christ Superstar” de Andrew Lloyd Webber, onde algumas interpretações exprimem genialmente o dramático conflito interior de Jesus Cristo, poucas horas antes de se deixar prender pelos fariseus com a ajuda de Judas Iscariotes – traidores sempre os houve. Jesus Cristo, mesmo sendo Deus feito Homem, teve de escolher, teve de optar em consciência, o caminho a tomar. Sempre o livre-arbítrio…
Hoje, salta-nos aos olhos a incapacidade da sociedade do bem-estar acompanhar, com um mínimo de profundidade, a densa questão filosófica e existencial que emana da inquietante Páscoa de Jesus Cristo. Tudo se resolve com uma escapadela turística e muita gastronomia, evitando-se qualquer convite ao questionamento sobre a nossa condição e razão de existir, à inquietação e ao espanto. A geração mais bem preparada de sempre (e a dos seus pais) disfarça mal a inaptidão para questionar a vida além do superficial e do plausível – uma hipnótica série de televisão resolve facilmente o tédio de tanto bem-estar. De resto, como referiu certa vez Stephen Hawking, “a Filosofia está morta”. Hoje não é mais do que um capricho caricato e inútil de uns quantos excêntricos (e não foi sempre assim?). A Salvação vem perdendo procura na medida em que nos vamos dissipando na precariedade do entretenimento e no sentimentalismo, infantilizados pelo apoucamento auto-induzido da nossa própria humanidade.
Mas vale a pena deixar por momentos de lado os ovos e os coelhinhos de chocolate para deitar um olhar à repudiada cruz. Ao menos na Páscoa. Talvez ela seja sinónimo da libertação por que todos ansiamos: a dor olhos-nos-olhos, que não escamoteia a angústia, a dúvida e a incompletude. A outorga da soberania. O desprendimento de nós face à grandeza do desconcertante destino de Jesus. A Cruz torna-se, afinal, o vislumbre de um lugar de paz interior, de recomeço. A verdadeira revolução que concede a tranquilidade ao Homem, capaz de amar o outro como a si mesmo, capaz de amar o seu inimigo, de assumir a carga do madeiro que simboliza as suas dores e inquietações. A pacificação com o Criador, a irmandade em Jesus. A morte que resulta em Vida, no Homem Novo. A Cruz que, como noite escura de nós, afinal nos fará inteiros ao raiar da manhã, libertos do nosso precário personagem. Porque partilhada com Cristo, é possível abraçar a cruz e chegarmos à prometida Páscoa redentora.
Dito isto, este ano não consigo desligar os últimos dias de Jesus da angústia que vivem por estes dias os Padres inocentes da Igreja, segregados, vilipendiados nas redes, nas ruas, nos jornais, sem direito à presunção de inocência e à defesa do seu bom nome. Condenados à fogueira por uma sociedade fútil, ressabiada e sedenta de escândalos que a distraiam duma vida sem propósito.
Tive a sorte de conhecer alguns dos melhores Padres da minha geração. A todos eles, que, persistentemente imitando Jesus, foram para mim faróis e apoio no caminho de vida, hoje é dia de aqui lhes deixar expressa a minha profunda gratidão. Que na tormenta da sua entrega à pesada cruz que lhes foi destinada, o Anjo de Getsémani lhes venha oferecer consolo e renovadas forças, para prosseguirem o seu serviço pastoral de anúncio da ressurreição que a todos é oferecida na Páscoa de Jesus. Para muitos como eu não há quem os substitua.
Uma Páscoa Feliz a todos os leitores do Observador.