1 Corria o ano de 330 a.C. quando Píteas de Massília, impelido por uma perseverança e coragem únicas, navegou até à ilha Thule. Desde então, o Ártico tem vindo a povoar o imaginário de vários povos, estando permanentemente envolto numa aura de mistério e curiosidade. Recentemente, as alterações climáticas sentidas na região, assim como a iminência de potenciais ganhos económicos relacionados com o seu degelo, desencadearam uma série de litígios entre os Estados setentrionais. Pese embora não seja um tema amplamente discutido pelos órgãos de comunicação social, será em torno desta região que se jogará parte fundamental do xadrez político internacional. É nesta corrida contra o tempo, com as previsões mais pessimistas a apontar para um degelo avançado em 2040, que a Rússia se tem posicionado estrategicamente com o objetivo de garantir e conquistar a hegemonia total nesta região.

2 Uma linha de análise alicerçada no realismo moderno, defendido por Maquiavel e Hobbes, olharia para grande parte da recente atuação militar russa como a permanente conquista e preservação do poder em prol do seu interesse nacional. Putin, através de uma retórica agressiva e militarista, tem procurado restituir a ferida aberta deixada por Ieltsin na sociedade civil pós-soviética. Apesar dos constrangimentos impostos pelas sanções, a Rússia é hoje um ator com um peso considerável no sistema internacional. A anarquia que impera neste sistema justifica, em parte, aquilo que tem sido o seu modus operandi na Crimeia e, agora, no Ártico. Moscovo não crê no poder conciliador de uma “autoridade central”, como a ONU ou a Santa Sé, para dar início a qualquer tipo de negociações de paz num futuro próximo. A relação de clientelismo e dependência energética criada com vários Estados, o seu imenso arsenal nuclear e o assento permanente no Conselho de Segurança, permitiram à Rússia controlar os danos colaterais emergentes da sua conduta hostil e beligerante no passado recente.

Na ótica dos responsáveis políticos e militares russos, o domínio estratégico e militar da região do Ártico é fundamental para reforçar o controlo e a exploração das commodities energéticas que compõem todo o perímetro circumpolar. De acordo com o último Levantamento Geológico dos Estados Unidos, calcula-se que estejam concentradas naquela zona 47 biliões de m3 de gás natural, 44 mil milhões de barris de gás natural liquefeito e 90 mil milhões de barris de petróleo. A aceleração do degelo da calota polar abrirá uma disputa intensa e altamente propícia ao conflito entre os países nórdicos, os EUA e a Rússia. Empresas petrolíferas, incluindo a ExxonMobil e a russa Rosneft, começaram já a realizar perfurações exploratórias na região, apesar de estarem cientes das limitações e obstáculos inerentes a um local onde os termómetros chegam a registar 45 graus negativos.

Caso esta operação seja bem-sucedida, as reivindicações territoriais surgirão com mais e maior frequência, em particular os pedidos de extensão das Zonas Económicas Exclusivas (ZEE) por parte dos estados envolvidos.  A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) é clara ao estabelecer um limite de 370 km de ZEE para cada signatário da Convenção, exceto nos casos em que existam provas concretas relativas à extensão das plataformas continentais (artigo 76.º). Em algumas situações, porém, pode também ser requerida uma extensão da ZEE até aos 650 km. Dinamarca, Islândia e a Noruega, estão também na corrida para assegurar os seus interesses. A grande incógnita passará por tentar entender como estes regimes democráticos, habituados à cooperação e ao estabelecimento de consensos, irão lidar com uma Rússia intransigente e com pouca predisposição para o diálogo. Para além do petróleo e do gás, estão também em causa matérias-primas como o zinco, o ouro e o níquel, que permitirão modernizar e alavancar as economias destes países no sector da tecnologia. Estas matérias são fundamentais para produzir baterias de aparelhos eletrónicos, eletrodomésticos e automóveis, tornando ainda mais apetecível a disputa pela ZEE com maior rácio de quantidade e qualidade destes recursos.

No plano comercial, existirão alterações substanciais nas principais rotas. O degelo em curso permitirá aliviar paulatinamente a pressão e o tráfego associados ao Canal do Suez. As emissões de CO2 serão reduzidas, bem como os custos de shipping associados ao transporte de bens de consumo. Em alguns casos, os tempos de viagem serão reduzidos para menos uma semana do que o tempo expectável entre o Este Asiático e a Europa Ocidental.

3 Evidentemente que existem custos ambientais associados a todas estas transformações, uma vez que esta é uma problemática de âmbito regional, mas com um impacto global. O degelo do permafrost aumentará as emissões de metano, exacerbando ainda mais os efeitos do aquecimento global nas correntes marítimas e em todo o planeta. As alterações nas correntes do Atlântico e na sua salinidade serão cada vez mais frequentes e as extinções de espécies como o urso polar, a foca e a raposa-do-ártico serão uma inevitabilidade. O Ártico funciona como um regulador térmico do nosso planeta e, a cada segundo que passa, parte da sua biodiversidade está a ser posta em causa.
É imperativo que este tema seja gerido de forma cautelosa e prudente pelos agentes políticos, não só por uma questão de justiça intergeracional, mas para preservar um equilíbrio saudável entre o crescimento económico e o ecossistema global.

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