Os resultados das eleições na Irlanda foram de tal forma surpreendentes que decidi analisá-los. E aquilo com que me deparei surpreendeu-me ainda mais que o resultado em sim. Ficámos a saber, por exemplo, através deste podcast da revista ‘The Spectator‘ que o Brexit teve pouca implicação nos resultados. De acordo com Denis Staunton, editor em Londres do ‘Irish Times’, o Brexit terá saído das preocupações dos eleitores irlandeses desde que Boris Johnson tirou o Reino Unido da União Europeia.

De tal forma que o que preocupa os irlandeses e os levou a votar como votaram terá sido o cansaço com a austeridade. Mas atenção: não a austeridade nos salários (a economia vai bem e recomenda-se), mas a dos serviços públicos (principalmente na saúde) ou a que advém da dificuldade em arranjar habitação, uma casa para viver. Foi neste ponto que o porquê dos resultados na Irlanda me interessaram já que a situação irlandesa neste ponto concreto tem muito a ver com o que se passa em Portugal: uma economia em crescendo, embora não tão robusta como a irlandesa mas que satisfaz a mediocridade a que nos habituámos e com a qual nos conformámos desde há mais de 20 anos; uma austeridade camuflada não na inflação (que o euro não permite e que por isso tantas críticas a esquerda lhe fez), mas nas cativações orçamentais que têm como consequência uma degradação continuada dos serviços públicos, nomeadamente no sector da saúde.

Tal como o governo irlandês, a esquerda portuguesa (PS, PCP e BE) está convencida que a maioria dos eleitores lhe perdoa a degradação dos serviços públicos. Os salários (principalmente os do sector público) vão sendo aumentados e nem toda a gente precisa de ir a um hospital. E quando precisa, ou dirigem-se a um privado ou a situação não é grave e resolve-se por si mesma. A esperança da esquerda é que esta degradação do SNS não seja suficiente para que o eleitorado altere o seu voto. Ora, o que a votação na Irlanda demonstra é precisamente o contrário: as pessoas estão atentas e punem os governos que mentem. Por isso votaram num partido que nunca esteve no governo e retiraram do poder um primeiro-ministro que contava ganhar sem grandes problemas.

Esta é a primeira lição a retirar desta eleição. Mas há outra. O partido que a venceu foi Sinn Féin que propõe um aumento de investimento público a par com a abolição de impostos, nomeadamente os que incidem sobre a propriedade. Isto é interessante porque o Sinn Féin é de esquerda. Seria como vermos ao PS a propugnar mais investimento público (e naturalmente um ponto final nas cativações na saúde) a par com a abolição do IMT e do IMI. Impensável? Não sei se assim tanto porque a partir de determinada altura (e na falta de dinheiro) os partidos socialistas serão forçados a incentivar a economia privada que os alimenta. Antes faziam-no emitindo dívida pública e estimulando a dívida privada de forma a se conseguir um crescimento económico artificial (porque financiado com dinheiro que ainda não se recebera). Ora, com os Estados e as pessoas totalmente endividadas a margem para isso é cada vez menor. De aqui em diante os partidos de esquerda só podem ir buscar dinheiro reduzindo impostos na expectativa que essa redução conduza a um crescimento económico e a uma consequente subida da receitas públicas. Claro que não vai funcionar porque o crescimento económico, o investimento necessário a esse crescimento, indispensável ao desenvolvimento está limitado pela dívida. Dívida que significa falta de capital. A falta de capital, e dito da forma mais simples que sei, significa falta de dinheiro. Aquele bem que o socialismo diz desprezar mas de que tanto gosta ao ponto de estar sempre a aumentar impostos e a criar taxas.

A eleição na Irlanda é um aviso para o que podemos assistir em Portugal. Primeiro, para uma surpresa eleitoral que ponha em causa as expectativas do BE, do PCP e do PS de António Costa, mas também a estratégia do PSD de Rui Rio. Segundo, um aviso para próximos passos (eu diria truques) que o PS poderá dar a nível de política económica: um disparar do investimento público acompanhado de uma redução de certos impostos. O descalabro seria inimaginável. No entanto, com as incógnitas que nos chegam da Alemanha, o marasmo em que se tornou o mandato de Macron e a estratégia de Boris Johnson de aumentar a despesa pública para compensar o Brexit, tudo pode ser possível. O PS não aceitou baixar o IVA na electricidade sob risco de desequilibrar as contas públicas que Bruxelas impõe. Mas as modas mudam e os políticos que seguem as modas crêem que o dinheiro vai na onda. Não vai. O dinheiro não é mais que uma moeda de troca, um instrumento das pessoas para comprarem o que valorizam. Se não valorizarem nada não compram nada.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR