Há dias a artista interdisciplinar Grada Kilomba expôs em Belém, junto à antiga Central Tejo, uma escultura a que deu o nome de “O Barco”. São 140 blocos de madeira carbonizada, escurecida, que procuram representar os corpos de escravos negros no interior de um navio negreiro.
Ou seja, “O Barco” evoca a história do tráfico transatlântico de escravos, história que a artista acredita ter sido escondida, silenciada e maliciosamente afastada do espaço público. Através desta escultura — e de uma performance de gestos e sons que a acompanha e que reforça a sua mensagem —, Grada Kilomba quer trazer às consciências, como ela própria diz no Público, “aquilo que foi tantas vezes negado ou apagado” porque, entre outras razões, “não interrogamos um sistema político que escraviza pessoas”.
Trata-se, a meu ver, de uma afirmação que se apoia numa falsa percepção de realidades passadas e numa fantasia que permite à artista combater moinhos de vento e fingir que descobriu a pólvora. É que ao contrário do que afirma, o “sistema político que escraviza pessoas” foi extensamente discutido e confrontado a ponto de ter sido desmantelado e ter sido impedido de continuar a escravizá-las. Mas isso não aconteceu agora, passou-se há cerca de 200 anos e resultou de um movimento a que chamamos abolicionismo, isto é, da convicção, que se foi difundindo no mundo ocidental, que o tráfico de escravos era errado, injusto, contrário à religião, aos interesses dos povos, à boa política e à racionalidade económica.
A verdade é que tudo isto que Grada Kilomba pretende estar a revelar, já foi largamente mostrado nesse contexto no mundo ocidental, inclusive em Portugal, coisa que a artista aparentemente ignora. Os abolicionistas britânicos perceberam que uma das formas de impressionar as pessoas e de as ganhar para a causa abolicionista era mostrar-lhes as condições em que os escravos eram transportados através do Atlântico. Fizeram gravuras que ilustravam isso mesmo, a mais famosa das quais é a do navio britânico The Brooks, publicada em 1788. Essa gravura foi um elemento importante da campanha abolicionista de finais do século XVIII e inícios do século XIX. Circulou abundantemente não apenas no Reino Unido mas por todo o mundo ocidental, chegando também a Portugal, onde teve difusão pública nos jornais. Nas últimas décadas a gravura do The Brooks voltou a circular profusamente em trabalhos académicos, artigos na imprensa, manifestos políticos, etc.
A escravatura é, ao contrário do que estes novos activistas do anti-escravismo procuram fazer crer, um dos assuntos mais mostrados, estudados e discutidos dos últimos 250 anos da história ocidental. Só por uma grande ignorância se pode pensar que o que se lhe refere esteve durante séculos escondido e em silêncio, e que só agora estará a chegar à superfície das consciências. Infelizmente é essa ignorância que os activistas que agitam esta questão nos dias de hoje vêm evidenciando a cada passo. Tudo se passa como se ainda vivessem em meados do século XVIII e não soubessem que o seu combate já foi combatido — e já foi ganho — pelos abolicionistas do século XIX. O que os referidos activistas trazem agora para a opinião pública é um remake, um déjà vu completamente artificial e fora de tempo. Fazem-no por várias razões, desde logo porque querem estabelecer uma oposição, uma dicotomia, entre uma história da escravatura narrada por brancos (que, supostamente, omitiria e silenciaria certas coisas) e uma história vinda de negros (que seria verdadeira e que iria finalmente revelar verdades incómodas). Ora a história da escravatura é só uma: a que se interessa pela verdade e tem um compromisso com ela. Não tem cor, não é branca nem preta, e há muito que está contada e bem contada. Do que ela não precisa é de narrativas que venham chover no molhado, e ainda menos precisa que lhe venham inventar mitos e falsidades.
“O Barco”, de Grada Kilomba, é uma escultura manifestamente inspirada pela gravura do The Brooks e de outros navios negreiros, gravuras essas que foram feitas e divulgadas por brancos. Não há nessa inspiração ou filiação qualquer mal, diga-se, o que não se pode é pretender que este tipo de representação é inédito ou que veio revelar aos portugueses coisas que nunca lhes haviam sido reveladas. Também não há mal em expor uma escultura deste género em Lisboa, desde que isso não seja um primeiro passo para saturar a cidade com uma overdose de representações desproporcional relativamente à realidade histórica.
Grada Kilomba indigna-se por haver no espaço público português ou, mais especificamente, lisboeta, várias representações da epopeia dos Descobrimentos e poucas ou nenhumas evocativas do tráfico de escravos e da escravidão. Mas há várias razões para que isso aconteça, das quais destaco duas.
A primeira, que tem que ver com a lógica e a natureza das coisas, é que os povos — todos os povos — evocam e celebram o que os engrandece e envaidece, e não o que os apouca ou deslustra — e o tráfico transatlântico de escravos não era coisa de que alguém se orgulhasse. O império romano teve um tráfico de escravos de enormes proporções. As estimativas mais minimalistas apontam para 100 milhões de escravos, número muito superior aos 14 milhões de negros que os povos árabes terão adquirido na África subsariana ou aos 12 milhões que daí foram levados por Portugal e outros países ocidentais através do Atlântico. Mas se Grada Kilomba deambular pelas ruas de Roma quantos monumentos encontrará alusivos ou dedicados aos pobres desgraçados que o império romano escravizou?
A segunda razão é que Lisboa teve pouca importância na história geral do comércio negreiro. O império português teve um grande envolvimento no tráfico transatlântico de escravos mas a participação directa de Lisboa nesse trágico transporte foi muito reduzida. Como mostrei num outro artigo, os navios negreiros que partiram de Lisboa e doutros pontos do território metropolitano não chegam a 4% da totalidade dos que levaram a cabo viagens escravistas. O tráfico português era, como já referi muitas vezes, um assunto essencialmente brasileiro e africano, com escasso envolvimento da metrópole. Ou seja, “O Barco” de Grada Kilomba seria mais adequado em Salvador, no Rio de Janeiro, em Luanda ou noutros portos brasileiros e africanos do velho império. A artista decidiu expô-lo em Lisboa, o que, apesar de ser algo deslocado, se aceita, mas convinha que os visitantes da sua exposição percebessem que Grada Kilomba está a tentar meter o Rossio na Betesga. Há que estar atento a iniciativas destas para evitar que os activistas exorbitem, exagerem, e transmitam às pessoas uma ideia completamente distorcida do peso e envolvimento da cidade de Lisboa no “odioso comércio”.