O comum dos mortais aprende por volta dos quatro anos que ao comer gradualmente um bolo o bolo desaparece do sítio onde estava, também gradualmente; e ao fazê-lo subitamente, desaparece subitamente.  Aprende ainda que ao acabar de comer qualquer bolo o bolo se acaba.  Deriva daqui o truísmo segundo o qual não é possível simultaneamente comer um bolo e ficar com esse bolo.  Como a vários outros truísmos, a física moderna encarregou-se de oferecer um desmentido.  Tipos especiais de bolo, descobriu-se, podem em teoria ser comidos e guardados.  A proposição é verdadeira a respeito da sobremesa a que os físicos se referem como o bolo de Schrödinger.  O bolo de Schrödinger, ao contrário das sobremesas mais correntes, pode ao mesmo tempo encontrar-se num estado de comido e num estado de guardado.

O bolo de Schrödinger é um sonho da indústria da hospitalidade; mas promete também alento à cultura num sentido lato, e encorajou várias outras receitas: uma delas é preparada à base da noção de verdade; e outra à base da noção de civilização.  Visam ambas a confecção de pratos inovadores inspirados pelo bolo de Schrödinger.  O primeiro consiste numa noção de notícias falsas que não depende da existência de notícias verdadeiras; e o segundo numa noção de retrocesso civilizacional que não depende da existência de civilização.

É assunto e objecto de alarme nos círios nocturnos que passam na televisão que a falsidade tomou conta do mundo contemporâneo, através de notícias que nos indicam que certas coisas que não são o caso são afinal o caso.    Acontece porém que quase todos os fiéis que choram pelo fim da verdade são aqueles que acham que a verdade é apenas um erro útil à selecção natural e à perpetuação do poder de certos bichos menos bons.  Também nesses círios se faz um uso generoso do segundo prato:  lamentam-se retrocessos civilizacionais, como poder comprar gasóleo nos dias santos, ou dar descomposturas a crianças.   Mas aqui também essas queixas são quase sempre feitas por quem acha que a civilização teria sido uma boa ideia que nunca ninguém chegou a ter; e que só existe para os efeitos de lhe sentirmos os retrocessos.

Percebe-se sem dificuldade a relação que estes dois pratos têm com o bolo de Schrödinger.  São ambos petiscos a que acontece estarem ao mesmo tempo em estados opostos: ser não-verdadeiro sem a maçada da noção de verdade; e lamentar retrocessos civilizacionais sem civilização para poder retroceder.   As novas receitas têm a vantagem não-negligenciável de terem substituído o cocktail Molotoff nas refeições das classes letradas.    Mas ao mesmo tempo são responsáveis por um elemento característico do culto contemporâneo da cultura: o espectáculo de grupos grandes de pessoas a chorarem em público o desaparecimento daquilo que nunca acreditaram que tivesse existido, mas sobretudo a pena que sentem por só gostarem daquilo em que não acreditam.

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