Fez agora um século que o presidente da República Francesa, Gaston Doumergue, entregou a formação do novo governo a Édouard Herriot. Herriot era, desde 1919, o chefe do Partido Radical-Socialista e ganhou as eleições legislativas de Maio de 1924 com uma coligação de esquerdas, o “cartel das esquerdas”.

A regra de Herriot, retomando o mote de Léon Bourgeois, era “pas d’ennemis à gauche”. Porém, os comunistas, os primeiros deputados comunistas eleitos em França, tinham-se recusado a participar na coligação. No “cartel das esquerdas” tinham ficado os radicais independentes, os radicais-socialistas, os republicanos socialistas, os socialistas independentes e os da Secção Francesa da International Operária (SFIO – Section Française de l’International Ouvrière).

Olhando para a França que amanhã vai às urnas nas mais simbólicas e importantes eleições na Europa desde 1945, e para os três blocos – direita nacional, centro e esquerdas moderadas e radicais unidas – que para a semana se vão reorganizar em dois, é importante ter em conta a história próxima.

Macron poderá ser arrogante, deslumbrado até, mas não é estúpido nem suicida. É um qualificado representante da oligarquia sistémica com o currículo clássico: formado na École Nationale d’Administration, foi Inspector de Finanças do Ministério da Economia (2004-2008) e passou pela banca de investimento (Rothschild & Co. Banque­, 2008-2012). Regressou ao Estado como Secretário-Geral Adjunto do Eliseu na presidência do socialista François Hollande (2012-2014) e foi Ministro da Economia e Finanças, sempre com Hollande, a partir de 2014. Em 2017 foi o candidato do sistema a disputar a segunda volta com Marine Le Pen.

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Em 2012, Hollande vencera o incumbente Sarkozy, que representava a Union pour un Mouvement Populaire, um guarda-chuva que abrigava gaulistas do Rassemblement pour la République e giscardianos da Union pour la Démocratie Française. Pretendia-se juntar tudo o que estava entre as esquerdas socialistas e comunistas e o Front National, uma “extrema-direita” que já assustava, com os temidos Le Pen, pai e filha. A verdade é que, em 2012, Hollande acabaria por ganhar a Sarkozy com 51,64% contra 48,36%.

Em 2017, com as desgraças à direita, a Union pour un Mouvement Populaire ultrapassou o Les Republicans, mas o alarme soou quando François Fillon ficou atrás de Marine Le Pen. Aí o jovem Macron, que em 2016 lançara o movimento En Marche, marchou, qual cavaleiro do Bem, contra o dragão do fascismo – ou melhor, contra a herdeira do dragão, que lhe surgia travestida de democrata e populista. E o Bem acabaria por vencer com 24% à primeira volta, contra os 21,30% do Mal. Depois, postos perante a escolha definitiva, 66% de intrépidos eleitores franceses optaram pelo caminho certo contra os 34% que voltaram a deixar-se seduzir pelas artes do Demo. Ou seja, em França, dois em cada três eleitores ainda eram eleitores de bem.

Mas entre 2017 e 2022 o Mal foi estendendo os seus tentáculos e progredindo: na primeira volta Macron voltou a ficar à frente, com cerca de 28%, seguido por Le Pen, com 23%, e por Jean-Luc Mélenchon, que rondou os 22%. Entretanto, Éric Zémmour aparecera à direita da “extrema-direita”, retirando a Le Pen talvez uns 7%. Na segunda volta, Macron ficaria com 58,55% e Le Pen com 41,45%. O Bem vencera outra vez, mas o Mal ganhava terreno. Agora, em cada 10 franceses, 6 votavam consciente e esclarecidamente e 4 votavam manipulados pelas forças do Mal.

Dissolução estratégica

A decisão de Macron de dissolver o Parlamento não foi uma decisão de última hora, tomada em cima da vitória da “extrema-direita” nas europeias. Segundo o Figaro, o Le Monde e o Le Point, no curso da campanha das eleições europeias, o Presidente já reunira o núcleo duro dos colaboradores para discutir essa alternativa.

Fazia sentido: depois das europeias, o macronismo e os macronistas ficariam a arder em fogo lento com uma maioria desmoralizada e desautorizada pelos sinais claros de desaprovação popular e em risco de cair a todo o momento por um voto convergente dos extremos. Macron jogava o tudo ou nada; sabia bem que não cumprira, mesmo naquilo em que se esperava que um financeiro liberal cumprisse (em 2017 herdara uma dívida pública de 2, 280 mil milhões de Euros, dívida essa que, em Dezembro de 2023, estava já acima dos 3,100 mil milhões, representando hoje mais de 110% do PIB); e sobretudo não se importava de correr o risco máximo de uma coabitação com o Rassemblement, sabendo que, no passado, as coabitações tinham sido geralmente negativas para a parte coabitante que estava no governo.

Depois, além de forçar a “extrema-direita” a partilhar o poder pelo lado do governo e a poder fracassar, Macron poderia, numa clara estratégia de “antifascismo”, ter a esperança de criar a ambicionada “frente” já com um apoio alargado – do jacobino Mélenchon ao rigorosamente ao centro François Bayrou, passando por alguns desconsiderados e despeitados das direitas. Afinal Léon Bourgeois nos anos 90 do século XIX e Herriot em 1924 tinham lançado o “pas d’ennemis à gauche” e Charles Maurras, o pensador da direita nacionalista francesa, o monárquico conservador e racionalista que influenciara por meio século o pensamento alternativo na Europa, o “pas d’ennemi à droite”.

Um outro “mundo de ontem”

Os dirigentes dos partidos “conservadores” do sistema euroamericano, ansiosos pela simpatia ou receosos da antipatia dos media e dos mandarins sistémicos, foram abandonando progressivamente os valores inerentes à vida das comunidades – pátria, religião, família, identidade. Para os defenderam surgiram então personalidades do novo caudilhismo mediático e de massas; personalidades quase sempre excêntricas também por desafiarem o centro, como Donald Trump, Jair Bolsonaro, ou Xavier Milei; ou formações político-partidárias vindas da margem do sistema, mas que foram sabendo, sem renegar o mais importante, adequar a mensagem aos eleitores. Eleitores esses que os liberais-chiques de todas as facções arrumam na quota dos “deploráveis” e que o que resta da Esquerda revolucionária quer manipular e mobilizar por via legislativa e pelo “activismo” violento, agitando um desajustado “perigo fascista”.

Lembre-se que, há um século, quem quebrou as regras do jogo das sociedades liberais em crise do início do século XX foi a Esquerda, ou melhor, a Extrema-Esquerda comunista, depois da revolução bolchevique na Rússia. A seguir à imposição da guerra civil e do terror vermelho, as movimentações comunistas prosseguiram na Polónia e na Hungria (com a breve e sanguinária ditadura de Bela Kun). Na Alemanha, tinha sido a revolta spartakista, em Berlim; em Itália, foi o chamado “Biennio Rosso”, com ocupações de terras e fábricas. A violência da Direita – nuns casos militar-autoritária, noutros partidária e de rua, com os fascistas de Mussolini – só veio depois de a Esquerda ter optado por essa via para a tomada do poder.

De resto, com a mobilização de milhões de jovens europeus na rotina do combate e da morte, a Grande Guerra criara uma disponibilidade generalizada para a violência. E depois da Grande Guerra, das revoluções e das suas consequências económicas e sociais, os Estados liberais do século XIX tinham passado a pertencer irremediavelmente ao “mundo de ontem”, tão magnificamente lembrado por Stefan Zweig na obra homónima.

Hoje, a perpetuação de um outro “mundo de ontem”, o espaço que os partidos do centro-direita à esquerda socialista europeia estão a tentar ocupar e preservar, vê-se na pressa e no critério com que seleccionaram a Presidente da Comissão Europeia, o Presidente do Conselho Europeu e a Responsável pelos Assuntos Externos da União Europeia. A ideia é impor a coligação popular-liberal-socialista na gestão da estrutura de Bruxelas antes da chegada dos “bárbaros”. A nomeação do liberal Mark Rutte, o derrotado primeiro-ministro holandês, para Secretário-Geral da NATO vem completar o naipe.

Será que isto vai agitar mais ainda a vaga das direitas nacionais e populares, que está a avançar nas eleições europeias e legislativas, e espicaçar o “activismo” das esquerdas mais extremas? É que hoje, ao contrário do que insinuam as proclamações alarmistas de Macron sobre “os extremos” e a “guerra civil”, a direita nacional e nacional-conservadora já não traz “esquadras negras”, nem camisas azuis ou castanhas: vai a votos e espera pelos resultados; e quanto à eleitoralmente mais exígua extrema-esquerda, confiante no seu caminho gramsciano “através das instituições” e na legislação que vai conseguindo avançar, passou a trazer latas de tinta, arco-íris, “ocupas”, “antifas” e manifs para secundar a inquestionada aura de vanguardismo e superioridade moral com que manipula as elites sistémicas.

Esperamos que, seja qual for o resultado eleitoral em França, ele seja respeitado por vencidos e vencedores e não haja a “guerra civil” que Macron, a partir de um aparentemente inocente e pacífico centro, parece querer agitar para segurar um poder que chegou à exaustão.