A arte da negociação que António Costa tem demonstrado, principalmente desde 2015, marca um novo período na análise da política Portuguesa e mais concretamente do nosso sistema político. Depois de domesticar a extrema-esquerda (que ordeiramente colocou as suas bandeiras sobre o pavimento do Largo do Rato), António Costa tem beneficiado da ação (e inação) errática de Rui Rio como líder do maior partido de oposição e da postura de Marcelo Rebelo de Sousa, como Presidente da República. Perante a emergência de um conjunto de interesses e objetivos pessoais, associados aos diversos calendários eleitorais que temos pela frente, ganhou força uma estranha coligação negativa, envolta sob o manto de uma pretensa “estabilidade” necessária para dar resposta aos problemas económicos e sociais que Portugal enfrenta (problemas de décadas, agudizados em períodos de governação socialista).
Paulatinamente António Costa foi conseguindo o que José Sócrates havia tentado, ou seja, tornar-se o “dono disto tudo”, mesmo perante a existência de um Governo minoritário. Ao amordaçar a extrema-esquerda, silenciou os sindicatos. Ao acenar com um pacote financeiro aos meios de comunicação social, granjeou as simpatias que faltavam para os elogios da praxe. Ao oferecer o apoio a Marcelo Rebelo de Sousa para as eleições de 2021 (tendo inclusivamente realizado a apresentação oficial desse apoio numa visita institucional à Autoeuropa), obteve o silêncio e a subjugação do Presidente da República, mesmo que esse apoio surja travestido de uma certa “cooperação institucional”. Ao beneficiar de uma conduta errática de Rio, avesso a debates, avesso ao trabalho parlamentar e à essência do que compõe o escrutínio das instituições e dos seus representantes, poderia alcançar o pleno para governar o país sem grandes sobressaltos.
Este cenário seria o suficiente para um passeio socialista, não fossem os alertas constantes de Bruxelas e dos parceiros europeus para a situação económica do país, para o endividamento crónico e para a dependência sistemática das “bazucas orçamentais”. Veja-se como o Governo celebra estas conquistas, qual tábua de salvação para alavancar medidas que possam acomodar certas elites. Veja-se a forma como Mário Centeno saiu da liderança do Eurogrupo, substituído por uma linha claramente oposta aquela que tinha defendido e que seria seguida pela ministra Espanhola, Nadia Calviño, caso a mesma tivesse obtido a eleição para a liderança do Eurogrupo.
A “aura” de António Costa não convence na Europa, tal como se tem visto na incapacidade de o Governo Português assegurar a defesa dos interesses nacionais quando falamos nos “corredores aéreos” e na forma como a resposta de Portugal ao controlo da pandemia é vista lá fora.
Por isso, não se compreende a suspensão das bases do debate democrático. Se a pandemia não suspende a democracia, não pode, igualmente, suspender a oposição ao Governo. Entre “drinks de fim tarde”, haveria tempo para quinzenalmente se questionar o Primeiro-ministro e colocar em primeiro plano as insuficiências desta governação. Sem debate, sem participação, sem escrutínio, sem pluralidade, sem contraditório, não há democracia. E a proposta que PSD e PS aprovaram na Assembleia da República para a diminuição do número de presenças do Primeiro-ministro no Parlamento (registe-se um maior número de votos contra de deputados socialistas do que de deputados sociais-democratas) vai ao arrepio do necessário controlo que a instituição deve exercer sobre a ação governativa.
No mesmo período, este “bloco central informal” aprovou mais duas medidas que atestam um repúdio a elementares regras da participação política, cívica e de enriquecimento da democracia. De uma assentada aumentou-se o número de assinaturas necessárias para uma petição ser discutida em plenário (de 4000 para 10000), o que constitui um ataque cerrado ao envolvimento dos cidadãos e à sua capacidade de influenciar o debate parlamentar. Num momento em que se discute o afastamento dos cidadãos da política, o aumento das taxas de abstenção, como se pode equacionar dificultar o acesso dos cidadãos a formas alternativas de envolvimento político? Por sua vez, PSD e PS aprovaram, igualmente, alterações às regras de candidatura às eleições autárquicas, impedindo que um cidadão se candidate, simultaneamente, à Câmara Municipal e à Assembleia Municipal. Naturalmente que esta medida visa dificultar a candidatura dos partidos de menor dimensão, bem como dos grupos de cidadãos eleitores (movimentos independentes), representando um ataque a um direito fundamental: o direito do cidadão se candidatar a dois órgãos distintos e optar, caso eleito para os dois órgãos, por exercer um dos mandatos.
Quando muito se fala do processo de consolidação da democracia Portuguesa, não podemos deixar de assinalar estes exemplos como representativos do longo caminho que temos pela frente. A democracia dá trabalho, e não pode ser defendida por quem espera que um dia o poder lhe caia nas mãos, fruto do natural desgaste de qualquer governação socialista. É preciso mais.
Vivemos mergulhados numa tripla pandemia: a sanitária, associada à Covid-19; a económica, com os indicadores do Produto Interno Bruto a indicarem uma forte crise pelo caminho e os números do desemprego a revelaram sinais de alerta para o bem-estar das famílias e uma pandemia política, associada a um parlamento que se transformou num “ringue de combate de extremos”, que se alimentam mutuamente e beneficiam da ausência de uma oposição construtiva e que se constitua como verdadeira alternativa à atual governação.
De um modo global, a República funciona sobre um terreno movediço, perigoso, onde os seus principais atores se movem num trajeto de distanciamento face ao cidadão comum e às suas reais necessidades. Urge regressar à base, à verdadeira noção de serviço público, servir e não se servir. Agir em prol do bem comum e garantir que o percurso se pauta pela seriedade, pela verdade e pela transparência.