O telemóvel pisca e tilinta. Um frémito de frio sobe espinha acima, o estômago revira-se, o coração desata a palpitar. O pequeno ecrã é o novo palco da crueldade e do pânico. Há mensagens de ódio e falsas imagens íntimas que assaltam a mente. Há palavras cortantes que ferem a alma.  As ameaças fluem em mensagens directas que se autodestroem, mas que deixam marcas mais fundas que cicatrizes. No frenesim das partilhas, dos comentários e dos gostos, no trolling, no fraping, no catfishing e no upskirting — sim, como na Idade Média, cada ferramenta de tortura tem o seu próprio rótulo –, os abusadores ocupam o lugar que querem. Metem-se no nosso telemóvel, no nosso bolso, no nosso imaginário, na nossa mente. Eles assombram e dominam o nosso “eu” virtual.

Este assédio torrencial não é só bullying. É violência brutal e impiedosa, que já vitimou cerca de metade dos jovens europeus. Segundo um estudo da Universidade de Swansea, as vítimas de ciberbullying têm “mais do dobro da probabilidade de automutilação e de adoptar comportamentos suicidas”. Onde se presumem jovens cheios de esperança e felicidade, a ciência e a prática clínica mostram-nos desespero e suicídio.

Nicole Fox, uma jovem de Dublin, carinhosamente tratada por “Coco”, foi uma dessas vítimas. A sua mãe, Jackie, ergueu-se em nome de todos nós, fazendo campanha pela protecção das nossas crianças e jovens.  Daí resultou a Lei do Assédio, das Comunicações Nocivas e das Infrações Conexas de 2020, promulgada na Irlanda em Fevereiro de 2021.

A lei de “Coco” veio complementar a legislação irlandesa que proíbe a distribuição de conteúdos sexualmente explícitos envolvendo menores de 18 anos. Ela cria novas infrações directamente relacionadas com as experiências dos jovens, impondo multas pesadas e até penas de prisão. Mas, acima de tudo, mostra que a sociedade está atenta às novas formas digitais de abuso, coacção e violência que tanto transtornam os nossos jovens.

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Desde que se tornou lei, a polícia irlandesa instaurou mais de 70 processos ligados ao abuso de imagens íntimas. Em 2017, foi a vez de o Parlamento italiano aprovar legislação contra o ciberbullying e, no ano passado, o Parlamento francês criminalizou o bullying escolar e universitário, incluindo o ciberbullying, sujeitando os infractores a multas até 150.000 euros e a penas de prisão até 10 anos. Estas políticas sancionatórias isoladas, Estado a Estado, não são suficientes. Se não criminalizarmos o ciberbullying em todos os países da UE, a nossa resposta será sempre frágil e contornável. As plataformas de redes sociais são poderosas e apenas uma resposta a nível europeu pode contribuir para uma solução deste problema.

Em Portugal, o bullying, o ciberbullying e o assédio digital não são classificados como delitos autónomos. Deste modo, a sua prática só pode ser processada com base em crimes “tradicionais” como ameaça, coação, assédio, difamação, invasão de privacidade, gravações e fotografias ilícitas, pornografia infantil e violência doméstica.

Podemos dar-nos ao luxo de esperar? Perguntem a Jackie Fox, que perdeu a sua filha. Perguntem a todos os pais cujos filhos sofreram e sofrem tormentos intermináveis. E quando soubermos das próximas vítimas deste flagelo, questionemo-nos: “Será que na UE fizemos o suficiente para proteger todos os nossos jovens da ciberviolência?” Hoje a resposta é não. Mas não tem de ser assim. Derrotemos os abusadores! Mãos à obra!