Durante séculos o teatro era o lugar onde os mais dotados e mais cultos exerciam os seus dotes. Ser actor, de teatro, era o prémio de uma carreira sem mácula. Ninguém se candidatava ao lugar sem ter lido e sobretudo assimilado os clássicos. Não apenas os que fossem passíveis de serem interpretados, mas todos, de molde a perceber a natureza humana que iriam interpretar. Da leitura de Platão e Aristóteles chegariam a Shakespeare e Ibsen, mas também às tertúlias onde a vida em geral era vista e escrutinada, onde se via depois de se ter olhado. Os mais dotados, passavam mesmo à fase de contemplação do que os primeiros só olhavam e os segundos já conseguiam ver.
Estes actores tinham um séquito de seguidores que os defendiam ou vilipendiavam consonante eram os seus eleitos ou não. De qualquer forma havia sempre um respeito pela profissão que era sinónimo de entrega e seriedade.
Se havia muitos teatros pequenos, os grandes, contudo, eram poucos. Todos tinham o seu encenador, o seu director artístico e algumas ocupações para quem não era tão dotado, como a venda de bilhetes e a limpeza do palco. A segunda escolha para quem não passava na candidatura a actor era ser ponto, onde a proximidade com as estrelas e o facto de estar dentro do palco lhe permitia na sua tertúlia tentar imitar o actor.
Os espectadores saíam do teatro para os cafés e discutiam não só o realismo que os actores haviam transmitido às cenas (os cenários foram sendo secundarizados), como, sobretudo, a mensagem que a peça transmitia.
O circo, que tinha começado por ser um espectáculo que as elites haviam criado para satisfazer o povo, ou o próprio imperador, onde por vezes juntavam pão, de molde a garantir a serenidade dos espectadores, mesmo após o espectáculo, tornou-se num espectáculo sobretudo para crianças, com excelentes interpretes da emoção. A razão no circo não fazia sentido. Pretendia-se que os espectadores acelerassem o ritmo cardíaco quando os trapezistas se atiravam para o abismo ou quando o domador enfiava a cabeça dentro da boca do leão. A ninguém ocorria pensar se o leão tinha dentes, ou se a senhora que vendia pipocas nos intervalos não havia sido serrada ao meio no número da caixa. O que se esperava eram os risos das crianças após os momentos de máxima emoção que eram sempre seguidos pelos dos adultos que se reviam jovens e se deixavam enlear pela ilusão.
Os palhaços eram sempre e apenas dois. Um dito rico e outro dito pobre. A fortuna ou miséria ficava-se apenas nas diferenças das roupas que se pretendiam pouco subtis. As graças eram simples e eram acompanhadas sempre com a música de um instrumento que tocavam na perfeição. Acordeão, trompete ou, para os menos dotados, viola.
O nível do circo media-se pelos animais que apresentavam. Os mais simples umas cabrinhas e dois ou três rafeiros, os mais ricos leões e tigres.
A dimensão do decote da ajudante era sempre proporcional ao sucesso do ilusionista.
Após terem chumbado por várias vezes nas candidaturas a actores, os excluídos começaram a oferecer-se aos circos, mas primeiro criaram uma associação secreta onde acertariam as regras do jogo. Entraram de mansinho, que trabalhavam de graça, que começavam pela venda dos bilhetes e depois logo se via. As razões do chumbo na escola de actores percebeu-se mesmo nos circos. Tentaram colocá-los como trapezistas e foi um desastre, como domadores e os bichos morreram à fome. Só como palhaços se ajeitavam, mas mais por tropeçarem muito e caírem de forma aparatosa do que por tocarem algum instrumento, o que não acontecia.
Andaram anos persistentemente nas suas pequenas ocupações até que os directores dos circos se foram reformando. Como, por falta de jeito, os excluídos do teatro se tinham mantido nas bilheteiras e lidavam bem com o dinheiro, coisa que quer no teatro, quer no circo, ninguém fazia e tinham já bons contactos com casas de crédito, pediram um empréstimo, que sabiam não conseguiriam pagar, e foram comprando os circos.
Assim que o primeiro dos excluídos chegou a director de um circo despediu logo os trapezistas e contratou, para substituir os dois trapezistas, quinze outros excluídos. A menina das pipocas ainda começou a dizer que não tinham treino, mas depois de ver os palhaços a serem despedidos calou-se. Pouco tempo depois dos elementos iniciais dos circos só restava mesmo a menina das pipocas. Mesmo os animais foram substituídos por excluídos vestidos com peles de leões e tigres. Só o número de palhaços aumentava loucamente. Não havia circo que não tivesse pelo menos cem palhaços. Quando não havia público sentavam-se nas bancadas e imitavam crianças indisciplinadas.
A baixa de qualidade dos espectáculos repercutiu-se no número de espectadores e as receitas caíram brutalmente não chegando para alimentar os muitos elementos que agora o circo tinha. Foram conversar com a casa de crédito que lhes disse para não se preocuparem que tratariam do problema.
Havia saído uma lei que obrigava os teatros a fazerem obras. Quando os directores foram pedir crédito para as obras a casa de crédito recusou-se. Passado pouco tempo quase todos os teatros haviam fechado.
Sem trabalho os actores foram-se oferecer aos circos. Os excluídos, com dívidas para pagar, ofereciam-lhes lugares nas bilheteiras, a limpar as jaulas ou a vender pipocas. Aos que se revoltavam ofereciam-lhe um lugar de trapezista, em especial se fossem gordos. Não os deixavam treinar, ocupando-os com outras tarefas e quando finalmente se estreavam estatelavam-se frente ao público. O público do circo hoje já não era composto por crianças, mas por excluídos dos outros circos que em acordo assistiam aos espectáculos uns dos outros.
Aqueles que haviam sido reis e generais mouros e que se viam estatelados no chão com o público a rir de escárnio foram abandonando os circos. Alguns houve que ainda tentaram vestir as peles dos leões e dos tigres, mas não os deixavam ser convincentes e também foram desistindo.
Alguns, muito raros, revoltaram-se e foram para a porta dos circos. Subiam para uma caixa de sabão e começavam a tentar contar o que se passava. Tinham estudado a retórica de Cícero e a lógica de Aristóteles, quando falavam as pessoas ouviam-nos. Os excluídos voltaram a pedir conselho à casa de crédito que arranjou logo solução. Parte dos revoltados foram enviados para o grande circo, no estrangeiro, onde seriam regiamente pagos, aos restantes seria oferecido emprego às mulheres e filhos e filhas na organização circense.
O público começou a protestar na rua, queria o teatro de volta e considerava que o circo não tinha qualidade. Assustados os excluídos criaram uns espectáculos ainda piores que por comparação faziam o circo parecer aceitável. Mas continuava a haver protestos. Aqui foi usada a associação que haviam criado e conjuntamente com a casa de crédito compraram todos os jornais e tudo o que produzia notícias que lhes pudesse ser desfavorável. Deixavam sempre um ou dois pseudo críticos para dar um toque de realismo.
Passaram então a uma solução de longo prazo. Conseguiram que nas escolas deixassem de estudar os clássicos. A disciplina de filosofia foi substituída por quatro: elementos do pensamento circense, o trapézio como elevação, a cama elástica como modo de vida, a palhaçada como pensamento. Cada disciplina tinha quatro professores. Também alteraram a língua. Criaram uma nova língua, que aos actores fazia lembrar os tempos pós-romanização.
Veio, como seria de esperar, uma grande crise de audiências (a assistência era já só composta por palhaços). Os excluídos construíram teorias diversas para a crise, mas que se resumia a culpar os actores dos países vizinhos que continuavam a fazer teatro em vez de circo. O dinheiro faltou e os directores dos circos cortaram os ordenados aos trabalhadores, excepto aos palhaços.
Os edifícios dos teatros considerados desactualizados foram demolidos. Os circos, entretanto, também tinham os panos rotos e as bancadas podres, mas ninguém investia. O dinheiro era apenas para os palhaços…