Inaugura a 18 de maio, dia internacional dos museus, no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, uma exposição temporária com parte do acervo do Museu do Caramulo. Em 2021 assinala-se também o centenário do nascimento de Abel Lacerda, o homem que idealizou este museu, um projeto tão improvável como estimulante, tão fora do seu tempo como resiliente, tão local como de vistas largas, tão privado como de interesse público.

Há várias características estruturais, marcantes, distintivas, que definem o Museu do Caramulo, e que contribuem para o seu carácter bastante raro no panorama nacional. Em primeiro lugar, resulta da energia vibrante de uma personalidade, assaz inesperada, que atuou por sua conta, num registo muito próprio de iniciativa, independência e voluntarismo. Em segundo lugar, a coleção de arte assenta num engenhoso modelo de doações, que permitiu reunir de forma eficaz um acervo relevante. Em terceiro lugar, tem sido notória, durante décadas, a relação umbilical entre o museu e a terra do Caramulo, constituindo aquele um polo decisivo para a afirmação desta vila-museu, demonstrando o impacto insubstituível que as instituições culturais podem e devem ter, na promoção do património regional e nacional, bem como na valorização dos territórios, servindo como eixos de atração e qualificação. Em quarto lugar, este museu é um ótimo exemplo de uma instituição descentralizada e com escassos meios, que tem conseguido, mesmo assim, desenvolver uma agenda ativa, interessante, realizando recorrentemente residências artísticas, promovendo exposições de talentos contemporâneos em convivência com a sua coleção permanente, lutando para potenciar um ambiente de modernidade e experimentação, que mais não é do que uma interpretação atualizada do espírito irrequieto do fundador.

Abel Lacerda corresponde, de facto, à figura do homem completo da primeira metade do século XX, com laivos de herói renascentista: colecionador impulsivo e eclético, cidadão com múltiplos interesses e vida cheia, médico e deputado, movendo-se com grande à vontade nas esferas económica, política e artística da sua época, próximo do antigo regime mas amante da cena cultural. Viveu vertiginosamente, acumulou centenas de obras de arte e explorou inúmeros interesses, com enorme sentido de urgência, antes de morrer num trágico acidente de viação, com apenas 36 anos. Constituiu uma coleção com qualidade, multifacetada, como era costume da época, agregando pintura, mobiliário, porcelana, artes decorativas. Desde tapeçarias de Tournai, a retratos de Eduardo Malta, desde o primeiro Picasso a entrar em Portugal, a pinturas de Grão Vasco. Teve a ousadia de imaginar e juntar uma coleção cujas obras seriam escolhidas por si – espelhando a sua estética, refletindo a sua visão – mas adquiridas por mecenas. Estabeleceu assim o princípio das doações como base para a coleção, instituindo o conceito do museu “da generosidade”, pioneiro em Portugal, mas comum no universo anglo-saxónico, tornando possível juntar em pouco tempo um acervo significativo. Deixou, ainda em vida, as bases para o futuro Museu do Caramulo, que não chegaria a conhecer. Na linha de inovação que o caracterizava, decidiu avançar com um edifício de raiz, sendo este o segundo projeto em Portugal concebido especificamente para museu (o primeiro tinha sido o do Museu José Malhoa, nas Caldas da Rainha). Fez tudo com gosto, com velocidade, com arrojo, com visão, com propósito.

Um dos grandes méritos da atual geração à frente deste museu – que retém uma forte componente familiar – é a vontade de não parar no tempo, antes pelo contrário, apostando numa programação decididamente contemporânea, que acrescente à base de partida. Neste registo, tem sido particularmente bem sucedida a série de exposições “Black box”, nas quais um artista selecionado desempenha o papel de curador, convidando um conjunto de outros artistas, alguns dos quais acabam, por sua vez, tornando-se doadores do museu. As edições já realizadas tiveram a assinatura de João Louro, Rui Sanches e Julião Sarmento.

Se a serra do Caramulo faz lembrar a “Montanha mágica”, de Thomas Mann; se Abel Lacerda encarna quase na perfeição a imagem do colecionador apaixonado e empreendedor; então o percurso de resiliência do Museu do Caramulo, durante mais de seis décadas, traz consigo lições a reter. Demonstra os benefícios da continuidade para as instituições. Demonstra o impacto que a sociedade civil pode ter na cultura. Demonstra como a generosidade das doações pode ser um contributo surpreendente para constituir e consolidar uma coleção. Demonstra que há iniciativas válidas por todo o território nacional. Demonstra que os projetos de média dimensão também contam. E demonstra como uma programação com vitalidade pode ser a pedra de toque para valorizar o património.

(Declaração de interesses: sou doador do Museu do Caramulo e a minha mulher é sobrinha-neta de Abel Lacerda)

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