Vivemos por estes dias tempos excecionais, onde uma nova estirpe de coronavírus, originária da China, rapidamente se expandiu globalmente, pondo em causa a resposta dos sistemas de saúde e causando alarmismo e pânico. A preocupação com o novo coronavírus é certamente justificada. O vírus aparenta ser altamente contagioso e ter uma taxa de letalidade consideravelmente elevada, em especial nos mais idosos e em pessoas com alguns outros problemas de saúde associados. Acresce que, tratando-se de um vírus que compromete nos casos mais graves a função respiratória, faz recordar a chamada Gripe Espanhola de 1918 (a 1920), uma pandemia provocada por uma estirpe do vírus Influenza que terá causado cerca de 50 milhões de mortos a nível global (numa altura, recorde-se, que a população mundial era bastante menos numerosa que hoje).

Recordar a Gripe Espanhola e a sua severidade e brutal custo humano deve colocar-nos alertas, mas também permitir-nos enquadrar o novo coronavírus de forma adequada. Esta pandemia, em muitas das suas características, não é fundamentalmente diferente de outras que vivemos. Aliás, talvez a sua principal distinção face a pandemias anteriores seja o impacto político e social (com inevitáveis consequências económicas) que está a ter nas sociedades democráticas e mais evoluídas. Talvez porque nos fomos convencendo que a sociedade enquanto um todo seria sempre capaz de gerir e mitigar os riscos, endereçando soluções que fossem percecionadas como eficazes e adequadas pela população, e onde o bem-estar foi sendo assumido como garantido (com a crença na omnipotência do Estado a substituir a mais humilde e limitada crença em Deus). O novo coronavírus pôs em causa a sensação de normalidade que é essencial para a convivência pacífica em sociedade, pondo à prova o sentido de coesão e a capacidade de liderança, em especial nas sociedades ocidentais.

Neste contexto, e apesar de algumas falhas de planeamento que não constituem surpresa, o governo português e as autoridades de saúde têm vindo a mostrar-se capazes de dar resposta efetiva e ponderada à ameaça, tomando iniciativas que, em linha com outras que assistimos em países congéneres, parecem proporcionais e adequadas para responder à propagação do novo coronavírus e mitigar os seus efeitos. Tudo isto num cenário decisório bastante influenciado pelas consequências nefastas ocorridas em Itália (e sua inevitável mediatização), por quebra na resposta do sistema de saúde. Conscientes da fragilidade do nosso próprio sistema de saúde para dar resposta a um  pico extraordinário de casos agudos, os governantes em Portugal optaram por tomar medidas drásticas e excecionais para atrasar a evolução da pandemia e ganhar algum tempo para reforçar a nossa capacidade de resposta, restringindo a circulação, e promovendo o encerramento de eventos e locais de grande concentração de pessoas, no que têm sido bem acompanhados pela população, que na sua grande maioria tem respeitado os pedidos de recolhimento e distanciamento social.

O recolhimento e a evolução da pandemia têm dado, porém, também espaço de afirmação a um outro vírus – o do medo – bastante mais corrosivo, que não se instalando no corpo corrói o espírito e o discernimento individual e coletivo, condicionando a decisão. Numa sociedade altamente mediatizada, onde a cultura do pavor e do pânico se enraizaram, a nova estirpe do velho vírus do medo tem como via privilegiada de contágio a internet e as redes sociais a que estamos constantemente ligados. Desde os supostos áudios de médicos que circulam por WhatsApp a receitas de sumo de limão para curar o vírus difundidas via Facebook e a desinformações de mortes ocultadas pelas autoridades, os rumores tornam-se o elemento mais relevante da perceção individual, encaminhando a consciência coletiva para a exigência de distopias que não imaginávamos possíveis num passado não muito longínquo. Esta nova consciência pós-moderna recusa também coletivamente o risco, as fatalidades da nossa existência, as inevitabilidades da natureza. Vive por isso tendencialmente alienada na exigência de soluções implacáveis e simplistas, construídas a partir de pressupostos não-reais, ignorando a complexidade da realidade, as suas interdependências, a multiplicidade dos interesses legítimos em jogo – e, sobretudo, não dá espaço para a incerteza, impondo ação e decisão. Queremos todos soluções imediatas, drásticas e mágicas. Para ontem. Que o governo já devia supostamente ter tomado há muito tempo. Nos últimos dias, a nossa consciência coletiva decretou guerra ao novo coronavírus e à COVID-19, não aceitando aos poderes políticos decisões que se afastem, ainda que marginalmente, da mobilização geral, de todos e a qualquer custo, até à capitulação total do vírus. Sem ponderar custos – económicos, sociais e até de saúde pública das medidas drásticas que vão sendo propostas – e sem autorizar que se equacionem e calculem as consequências.

É fundamental por isso que comecemos não apenas a cuidar do corpo e a combater o novo coronavírus, mas também a limpar os espíritos erradicando o medo, preparando a consciência coletiva e cada um de nós para o regresso à normalidade, que terá necessariamente de ocorrer muito antes do controlo total da pandemia. Uma nova normalidade onde teremos forçosamente de conviver com o vírus, aceitando os riscos inevitáveis e as limitações da existência humana, até que se descubra uma vacina. Protegendo o mais possível os mais vulneráveis, certamente, cuidando dos que sejam infetados, procurando mitigar os riscos de contágio, mas sem fechar a sociedade num “lockdown”, sitiando a comunidade numa batalha hollywoodesca em que sacrificamos de forma draconiana parte significativa do nosso futuro por causa de um vírus cuja letalidade é, apesar de tudo, circunscrita e já relativamente conhecida. Quando o sistema de saúde estiver mais preparado, e o grau de propagação for compatível com a sua capacidade de resposta (algo que terá de ocorrer nos próximos dias), teremos necessariamente de reagir e aceitar que não há sociedades prósperas sem produção, nem sistemas de saúde sem criação de riqueza. Os custos humanos desta “infodemia”, deste “pânico moral” (usando as palavras de Samuel Paul Veissiere) que está a paralisar o sistema económico e a suspender as nossas liberdades serão muito superiores se passarmos a decidir dominados por uma vertigem de medo, por uma consciência coletiva que ignora os dados do real e se deixa dominar por um pavor que não é proporcional face ao que resulta de uma análise racional, serena e ponderada da realidade

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