Quando empreendemos uma abordagem filosófica às teorias identitárias de esquerda não podemos perder de vista o paradigma contra o qual elas se colocam. Esse paradigma é o paradigma liberal, e não deve ser confundido com a expressão “liberals” que, em contexto norte-americano, se refere aos “progressistas” ou apoiantes do partido democrata. Quando falo em paradigma liberal quero referir o Liberalismo filosófico, que nos legou o vocabulário da universalidade, da igualdade perante a lei, da racionalidade, da objetividade científica.
O paradigma liberal é ainda o paradigma da neutralidade política: um estado liberal deve ser neutro quanto aos projetos políticos dos seus cidadãos, garantindo que esses projetos resultam de uma escolha individual livre e não de uma imposição coletiva ou estatal; mas também deve ser neutro quanto à identidade dos seus cidadãos: a lei deve aplicar-se igualmente a todas as pessoas e identidades, de acordo com o princípio de não discriminação. A teoria do daltonismo racial é, como vimos, uma manifestação desta tentativa de tratar todos os cidadãos da mesma forma, independentemente da sua cor de pele: uma sociedade liberal justa estaria garantida quando a cor de pele se tornasse um fator irrelevante, como disse Martin Luther King. E nos Estados Unidos isso significaria atingir uma sociedade pós-racial, em que qualquer pessoa pudesse vingar – ter sucesso – independentemente da sua raça.
Foi neste contexto que a eleição de Barack Obama, em 2008, foi entendida por muitos como um sinal de que o momento pós-racial tinha chegado: uma nação em que o problema racial esteve presente desde o início (recordemos o compromisso dos três-quintos para efeitos de aprovação da constituição norte-americana) tinha finalmente garantido igualdade de oportunidades para todos. Obama simbolizava, então, não apenas a América que tinha sido capaz de superar o passado, mas também o próprio sonho americano: a crença de que qualquer pessoa, independentemente da sua origem, poderá triunfar – e de que esse triunfo depende apenas do seu esforço e do seu mérito.
Obama subscreveu sempre esta narrativa do daltonismo e do mérito e tornou-se, por isso, alvo de ataque por parte dos académicos identitários, que recusaram a sua eleição como um acontecimento positivo. É o caso de Eduardo Bonilla-Silva, autor de Racismo sem racistas, que dedica o décimo capítulo do seu livro à crítica ao presidente norte-americano. Para Bonilla-Silva, ao contrário do que a eleição de Obama poderia dar a entender…
“desde o final dos anos de 1970 o progresso racial nos Estados Unidos estagnou e, em muitas áreas, regrediu. Indicadores socioeconómicos revelam graves disparidades raciais em renda [rendimento], riqueza, habitação e posição educacional e ocupacional em 2008. Agora, anos mais tarde, as disparidades permanecem e, no que tange a alguns indicadores, são ainda maiores.”
Assim, a eleição de Obama representaria não uma sociedade pós-racial mas uma transformação da discriminação racial, que passou do racismo explícito de tipo Jim Crow para um racismo subtil e velado que, parecendo gentil, “é extremamente eficaz na preservação de vantagens sistémicas para os brancos”. Isto significa que o antigo conceito de racismo já não seria útil para compreender as desigualdades raciais: para o fazer temos de compreender o racismo como “uma estrutura, isto é, uma rede de relações sociais nos níveis social, político, económico e ideológico, que configura as oportunidades de vida das várias raças”.
Foi este entendimento de racismo como fenómeno estrutural que levou à consagração da nova palavra de ordem: o antirracismo.
O antirracismo
Importa ter em conta o salto conceptual que é realizado com este novo termo: considerando os princípios da teoria crítica da raça (TCR), o modo como a sociedade se organiza é ela mesma racista, pelo que as instituições sociais refletem estruturas de opressão e discriminação raciais inescapáveis. Isto significa que o racismo deixa de ser relevante enquanto comportamento individual: se somos “brancos”, beneficiamos da estrutura; se beneficiamos da estrutura estamos a pactuar com o racismo. A única saída é tornarmo-nos antirracistas, ou seja, contestarmos ativamente as estruturas sociais.
Como diz Eduardo Bonilla-Silva:
“Para os leitores nessa situação (pessoas boas que podem concordar com muitos dos enquadramentos da cegueira de cor), recomendo com insistência um movimento pessoal e político, que deixem de alegar que são “não racistas” para se tornarem “antirracistas”. Ser um antirracista começa com a compreensão da natureza institucional das questões raciais e a aceitação de que todos os atores em uma sociedade racializada são afetados materialmente (recebem benefícios ou têm desvantagens) e ideologicamente pela estrutura racial. Essa postura implica assumir a responsabilidade por sua participação relutante nessas práticas e começar uma nova vida comprometida com o objetivo de alcançar uma igualdade racial verdadeira.”
Em harmonia com as suas influências estruturalistas e pós-estruturalistas e contra o individualismo liberal, estas perspetivas críticas desvalorizam os comportamentos subjetivos de racismo. Focam a sua análise apenas nas estruturas sociais, recusando que se possa negar o racismo estrutural: quem recusa reconhecer que essas estruturas são racistas quer continuar a beneficiar dos privilégios que elas lhe garantem e é isso que torna essa pessoa racista. Em última instância, ficamos obrigados a subscrever a noção de racismo que estes autores prescrevem: se a recusarmos, por não concordarmos com os argumentos apresentados, então somos racistas – não há lugar para a troca de ideias. É neste sentido que o linguista John McWhorter considera que o racismo woke constitui uma nova religião.
BLM e Ibram X. Kendi
Estas ideias estavam relativamente confinadas ao reduto académico e ao mundo do ativismo até que três ativistas norte-americanas – Patrisse Khan-Cullors, Alicia Garza e Opal Tometi –, em reação ao assassinato de Trayvon Martin em 2012, decidiram criar o movimento digital Black Lives Matter (BLM). Com o objetivo de lutar contra o racismo e a violência contra os negros, em especial a violência policial, o movimento foi aumentando a sua popularidade nos anos seguintes com a morte de afroamericanos às mãos da polícia. Mas será a morte de George Floyd, reproduzida até à exaustão nos meios digitais e em plena pandemia, a impulsionar protestos antirracistas violentos em várias cidades norte-americanas, com exigências de eliminação de financiamento para a polícia (“Defunding the Police”) e uma radicalização que estipulou um lema único: “Black lives matter” e não “All lives matter”. O país assistiu a uma enorme mobilização social, com contributos que levaram a que mais de 90 milhões de dólares tivessem entrado nas contas do movimento em 2020.
Não cabe aqui a discussão sobre o complexo problema da diminuição de financiamento da polícia, decisão tomada em algumas cidades por pressão mediática mas que tem revelado carecer de apoio maioritário, mesmo (ou sobretudo) junto das comunidades negras e latinas. Já o financiamento do BLM parece estar envolto em enorme polémica, com acusações de utilização indevida das verbas para despesas pessoais, e demonstrando que o Liberalismo tinha razão em pelo menos uma coisa: o poder corrompe sempre e independentemente da cor da pele.
Para além de distúrbios violentos, discurso de ódio e problemas financeiros, o BLM legou-nos ainda uma das figuras mais caricatas da última década: o ativista e académico Ibram X. Kendi, considerado pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes de 2020. Em 2016, Kendi recebeu o National Book Award para não-ficção com o livro Stamped from the Beginning, mas foi a publicação de How to Be an Antiracist, em 2019 (edição brasileira: Como ser antirracista), a lançar o seu nome para a popularidade no contexto do BLM. Foi-lhe atribuída a MacArthur Fellowship (também designada como “bolsa para génios”) e a Universidade de Boston convidou-o a fundar e dirigir o Centro de Investigação Antirracista.
Tudo isto considerado, o livro torna-se obrigatório para quem se debruça sobre estes temas. Mas devemos dizê-lo com sinceridade: a sua leitura é um sacrifício. Num estilo popular neste tipo de autores (pensemos em Porque deixei de falar com brancos sobre raça, de Reni Eddo-Lodge, ou Entre mim e o mundo, de Ta-Nehisi Coates), Como ser antirracista pertence à categoria “literatura de verdades emocionais” (mais sobre isto num próximo texto). Baseia-se na vida e experiências do autor, algumas mais traumáticas do que outras, como ter descoberto que o seu nome de origem, Henry Rogers, para além de ser pouco interessante em termos mediáticos, é também o nome do nosso Infante D. Henrique, que Kendi aponta como o responsável pela escravatura e o capitalismo: mudar de nome era, por isso, urgente. O segundo passo é confessar de que modo, ao longo da sua vida, pensou e fez coisas racistas e como isso o fez compreender o que devemos fazer para nos tornarmos antirracistas.
Como ato de contrição individual, as confissões são sempre relevantes; e quando lemos Agostinho ou Rousseau, podem ser mesmo literariamente interessantes. Mas daí a tornarem-se um trabalho académico de mérito vai um enorme passo. O primeiro problema é que Kendi, propondo-se redefinir conceptualmente o racismo, usa a palavra-chave no próprio processo de definição. Quase todos os capítulos se iniciam com definições deste género:
“Racista: alguém que apoia uma política racista por meio de ações ou inações, ou expressando ideias racistas.
Antirracista: alguém que apoia uma política antirracista por meio de ações ou expressando ideias antirracistas.”
Tentemos outra abordagem: o que devemos fazer?
“A única solução para a discriminação racial é a discriminação antirracista. A única solução para a discriminação passada é a discriminação presente. A única solução para a discriminação presente é a discriminação futura.”
Não é fácil sair desta lógica circular… No final, o que Kendi parece querer dizer é que, embora possamos ter individualmente comportamentos racistas (a que somos levados por políticas racistas), devemos concentrar-nos nas políticas públicas e avaliar se essas políticas promovem igualdade racial, ou seja, se os efeitos possíveis/prováveis das leis a serem aprovadas terão um impacto positivo nos grupos raciais desfavorecidos.
Terá sido esta ideia a levar a Universidade de Boston a propor a Kendi a criação de um centro de investigação antirracista que permitiria agir concretamente na determinação de políticas públicas – a ideia foi, mais uma vez, recebida com entusiasmo por parte dos progressistas (Jack Dorsey, ex-Twitter, contribuiu com 10 milhões de dólares). Infelizmente, no passado mês de setembro, Kendi e o seu centro foram acusados de má gestão financeira e encontram-se sob investigação da Universidade.
Sinais de esperança?
O fracasso do BLM e de Ibram X. Kendi não nos devem fazer esquecer os problemas raciais nos Estados Unidos, mas devem pôr-nos de sobreaviso quanto às indignações mediáticas e muito dependentes do mundo digital: a realidade é muito mais complexa do que os caracteres permitidos pelas redes sociais; os problemas não se resolvem com violência e figuras mediáticas; e a democracia exige uma enorme capacidade de diálogo, que não se consegue quando adotamos uma perspetiva identitária. Ou como Barack Obama disse na Palestra anual de homenagem a Nelson Mandela:
“[A] democracia exige que sejamos capazes de entrar na realidade das pessoas que são diferentes de nós por forma a compreender o seu ponto de vista. Talvez nós possamos mudar as suas ideias, mas talvez sejam elas a mudar as nossas. E não podemos fazer isto se ignorarmos, logo à partida, o que os nossos adversários têm para dizer. E não o podemos fazer se insistirmos que aqueles que não são como nós – porque são brancos ou porque são homens – de alguma forma não podem compreender o que estou a sentir, que de alguma forma eles não têm legitimidade para falar sobre certos assuntos.”