Quem está familiarizado com os últimos livros de Douglas Murray (A estranha morte da Europa e A insanidade das massas) não se surpreenderá com A Guerra ao Ocidente, publicado entre nós no mês passado. O estilo jornalístico mantém-se, pelo que não se trata de uma obra de filosofia ou teoria política: embora baseie a sua análise em fontes académicas, Murray propõe-se descrever o que tem vindo a acontecer no Ocidente a partir de exemplos e situações reais. Mantém-se igualmente o principal mérito dos seus livros: o autor referencia todos os exemplos e situações que percorre, possibilitando ao leitor a confirmação das informações e a avaliação externa das suas afirmações.
De um título tão combativo poderíamos esperar que Murray se debruçasse sobre as várias dimensões de ataque aos princípios liberais do sistema ocidental, sob aquilo que temos designado como wokismo. No entanto, este livro circunscreve-se a uma dimensão muito particular desse ataque: aquela que resulta da Teoria Crítica da Raça (TCR), que acusa o projeto ocidental de ser resultado de ideias de homens brancos e assente num racismo socialmente construído.
É então um ataque à “branquitude” que Murray pretende denunciar, considerando, em especial, o que aconteceu nos últimos dois anos. Na verdade, as ideias da TCR já se encontravam em ampla circulação nos meios académicos norte-americanos desde os anos 1980, promovidas por autores como Derrick Bell, bell hooks, Kimberlé Crenshaw e Richard Delgado; mais recentemente, destacam-se Ta-Nehisi Coates, Ibram X. Kendi ou Robin DiAngelo. Mas foi o verão de 2020, em resultado da morte de George Floyd, que levou à explosão destas ideias e da popularidade do movimento Black Lives Matter (BLM), naquilo que Murray diagnostica como um ataque cerrado, a partir da perspetiva racial, à cultura, sociedade, conhecimento, princípios e valores ocidentais.
Partindo assim da raça (capítulo 1), Murray debruça-se sobre o ataque da TCR ao ensino da história e ao simbolismo das figuras históricas (capítulo 2), passando pelo tema das reparações. Mas eu destacaria, certamente por defeito de formação, o capítulo 3, dedicado à religião, filosofia e ciência. Aí, Murray debruça-se sobre os autores clássicos que têm sido descredibilizados como racistas – Immanuel Kant, Aristóteles, David Hume, John Stuart Mill –, e sobre o espírito das Luzes que tem estado sob ataque:
“Porque o sistema que [foi aí estabelecido] é a antítese do sistema que está hoje a ser construído: um sistema inteiramente oposto à ideia de racionalismo e de verdade objetiva; um sistema dedicado a varrer toda a gente do passado, bem como do presente, que não se vergue ao grande deus do presente: “eu”.”
Em particular, destaca a investida que é agora dirigida à mais inesperada das vítimas:
“Isso é precisamente o que foi feito nos últimos anos com o desenvolvimento da “matemática equitativa”. Esta é a ideia de que a matemática é em si mesma problemática. O argumento é que a matemática é elitista, privilegiada, e, é claro, intrinsecamente racista. [Mas] como pode um sistema que deve a sua origem a várias civilizações, e que foi refinado no Ocidente nos últimos milénios, ser visto como sistematicamente racista?”
Para Murray, um dos aspetos mais relevantes desta guerra é o facto de ser promovida a partir de dentro do próprio ocidente e não de potenciais inimigos externos. Pensemos, a título de exemplo, em Robin DiAngelo e o seu livro Fragilidade branca: porque é tão difícil para os brancos falar sobre racismo. Para esta autora, branca, o mundo atual é resultado de decisões que visaram propositadamente a construção de uma sociedade que beneficia os brancos. Nesse sentido, o racismo não carece de prova – o sistema foi construído a partir de bases racistas – e a supremacia branca é um facto – o sistema garante que todos os brancos beneficiem dele. Os brancos devem “entender o racismo como um sistema para o qual [são] socializad[os]” e não como “atos intencionais de discriminação racial cometidos por indivíduos imorais”. E, em prol da justiça racial, devem reconhecer a sua branquitude e o seu consequente privilégio e tornar-se abertamente antirracistas.
(Entre nós, a mais recente polémica sobre os polícias que terão, alegadamente, proferido afirmações discriminatórias e racistas confronta-nos com o âmago deste raciocínio: há responsabilidade individual quanto a esses atos, ou somos todos vítimas pactuantes de um sistema estruturalmente racista? Voltaremos em breve a este livro.)
O argumento que DiAngelo nos apresenta coloca-nos na encruzilhada identitária: ele força-nos à identificação como brancos. Seguindo a tradição liberal, muitos autores tentam fugir ao dilema e recusam autoidentificar-se desse modo. Mas Douglas Murray toma um caminho diferente: “Não penso especialmente em mim como sendo branco e não quero particularmente ser empurrado para pensar nesses termos. Mas se me vão encurralar, então deixem-me dar-vos a melhor resposta de que sou capaz.”
Encostado à parede, assume sem medo a defesa do ocidente, e as últimas páginas do livro são dedicadas a todas as conquistas e benefícios que os brancos legaram ao mundo:
“O bom de se ser branco inclui ter nascido numa tradição que deu ao mundo uma quantidade imensa, se não a maioria, das coisas de que o mundo atualmente beneficia. A lista de coisas que os brancos fizeram pode incluir muitas coisas más, como acontece com todos os povos. Mas as coisas boas não são poucas.” (continua)
Resta saber se é possível vencer a guerra quando aceitamos entrar na luta identitária.
P.S.: Um dos exemplos referidos por Douglas Murray é a luta de Jodi Shaw contra o Smith College por discriminação racial. A experiência de Shaw é sintomática dos nossos tempos e as suas reflexões são muito pertinentes. Destaco, em particular, o documentário realizado por Eli Steele (e o dilema central de tudo isto que é retratado nos dois minutos finais).