A descentralização em Portugal revela-se como uma exigência constitucional e cabe ao legislador ordinário a concretização de um modelo prático, capaz de conciliar a unidade do Estado com o respeito pelo princípio da autonomia local e descentralização democrática da Administração Pública (art. 6º da CRP). A prossecução da tarefa pública não deve ser afeta a uma única pessoa coletiva – Estado – mas, sim, distribuída por todas as pessoas coletivas dotadas de autonomia. Isto significa que o legislador constitucional faz valer a ideia de que a autonomia regional e o princípio da autonomia das autarquias locais (descentralização territorial) são partes integrantes da “dimensão da organização do Estado unitário”.

O Artigo 267º/2 da CRP estipula que caberá à lei a definição de uma adequada descentralização. Assim, merecem destaque as mais recentes transformações legislativas sobre a descentralização e que passam pela transferência de competências para os municípios. Hoje, deparamo-nos com uma transferência para as autarquias locais e entidades intermunicipais de competências que, por tradição, estiveram sempre nas mãos do Estado (maxime, correspondiam a competências do Governo, enquanto órgão máximo da Administração).

Da leitura de todas as competências que os diplomas legais fazem transferir para as autarquias locais e entidades intermunicipais (por exemplo, praias, exploração das modalidades afins de jogos de fortuna ou azar, turismo, justiça, vias de comunicação, fundos europeus e captação de investimento, associações de bombeiros, estruturas de atendimento ao cidadão, património imobiliário público sem utilização, estacionamento público, proteção e saúde animal, educação, cultura, saúde, transportes em vias navegáveis interiores, proteção civil, áreas protegidas, competência relativa à autorização e comunicação prévia das ações de arborização e rearborização e policiamento de proximidade), faz parecer que o legislador quis reforçar o poder local. Analisando o art. 2.º da Lei nº 50/2018, vemos mesmo que esta transferência está carregada de boas intenções, uma vez que tem sempre em conta a natureza da autarquia local e orienta-se no sentido de ter sempre em consideração que a transferência se deve operar apenas quando esta se mostra como a forma mais adequada ao exercício da competência em causa. No entanto, podemo-nos questionar se, tendo em conta o elenco de competências que se querem ver transferidas, estamos a assistir a um reforço do poder local ou a um esvaziamento (premeditado, ou não) dos poderes do Estado. Ou, ainda, podemos levantar a questão, se este reforço de poderes não se traduz, antes, como um esforço demasiado penoso para as autarquias locais.

Em relação à dicotomia reforço do poder local vs. esvaziamento do poder do Estado, há autores e titulares de órgãos autárquicos que advogam que o processo de descentralização em curso deve ser o rumo a tomar como forma de solucionar os problemas locais, tendo em conta a proximidade, nas autarquias locais, entre cidadãos e Administração. No entanto, também conseguimos encontrar vozes dissonantes, no sentido de dizerem que esta é uma forma de esvaziamento dos poderes do Estado, retirando-lhe responsabilidades em matérias tão essenciais como a saúde ou a educação. Acresce, ainda, o facto da problemática do financiamento que passará a existir (ou não) nos orçamentos dos órgãos locais para responderem a este acréscimo de responsabilidade.

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Quanto ao esforço demasiado penoso para as autarquias locais, entendemos que, pese embora sejam demasiados os âmbitos que agora passam (ou passarão) a estar sob a égide das autarquias locais (ou entidades intermunicipais) e o dever de financiamento para uma resposta eficiente, o legislador não fez operar esta transferência de competências de forma imediata. O art. 4º/3 da Lei nº 50/2018 consagra o chamado princípio do gradualismo, estipulando uma data futura para que estas competências se vejam, definitivamente transferidas. E mais, a lei é de 2018, sendo que, se as autarquias locais não quisessem receber as competências em 2019 ou 2020, apenas o tinham de comunicar à Direção-Geral das Autarquias Locais (DGAL), nos termos do nº 2 do art. 4º da Lei nº 50/2018. Ou seja, o legislador permitiu que, até à data fixada, a autarquia local ou entidade intermunicipal pudesse promover uma reflexão exaustiva e trabalhada no sentido de melhor decidir ou “aderir” ao pacote de transferências, não tendo sido obrigatório que os municípios, por exemplo, aceitassem logo as competências depois da entrada em vigor dos diplomas legislativos.

Ainda quanto ao caráter “imediato” da transferência das competências, da sua natureza e da afetação de recursos, importa referir-se que a Lei-Quadro “não opera de per si”, mas sim através de diplomas legais especificamente dedicados a cada setor relativamente às diferentes áreas a descentralizar.

Como seria de esperar, cada diploma setorial deveria fazer referência ao envelope financeiro capaz de dar resposta à afetação dos recursos necessários à transferência de competências em cada área setorial. Ora, à exceção de muito poucos setores, somos levados a crer que quase nada é avançado no que respeita ao pacote financeiro, o que acaba por justificar o entrave de que muitos municípios têm vindo a alegar para a não aceitação das transferências. Numa análise prática daquilo que, efetivamente, se passa na realidade, apesar de, em 2019, termos assistido a um desaparecimento do Fundo de Financiamento da Descentralização (FFD) do Orçamento do Estado, o certo é que no Orçamento do Estado de 2020 já vimos inscritos a autorização de transferência, em regime de duodécimos, para o FFD. No entanto, para o ano de 2021, vemos que figurava na Proposta de Orçamento do Estado apresentada pelo Governo (Proposta de Lei nº61/XIV), no seu art. 83º/6, uma autorização de transferência mensal para o FFD (a par do que sucedeu em 2020). Acontece que essa proposta foi eliminada e não há, agora, qualquer menção ao FFD na Lei de Orçamento do Estado para 2021. Aquilo para que apelamos, é que o Estado faça acompanhar a transferência de competências com os recursos financeiros necessários. Portugal não se destaca, é certo, pelas melhores condições económico-financeiras. No entanto, a descentralização de competências não pode servir como – usando uma expressão inglesa – bend the law. Havendo uma transferência universal e definitiva de competências para os municípios, e que antes cabiam ao Estado, este último vê, necessariamente, a sua despesa diminuir. Ora, o Estado não pode, em virtude desta universalidade e definitividade, cair na tentação de não transferir aquilo que deve, de forma a que o poder local consiga, efetivamente, desempenhar as novas competências de forma sustentável.