Tal como S. Paulo, Bento XVI em nada se apouca. Ambos lançam um desafio que nos é dirigido: “transformai-vos!”. Agora que partiu, e ainda decorrendo as exéquias, recordo o dia em que pela primeira vez, acabado de ser proclamado papa, apareceu à famosa janela na Praça de S.Pedro e desejou ser “apenas” um humilde trabalhador na vinha do Senhor. Agora que partiu, testemunho aqui aquilo que me pareceu ser o âmago desse trabalho: o seu amor a Cristo e o seu extraordinário trabalho intelectual. Um homem no lugar certo, na hora certa. Nas nossas mãos fica uma herança de contornos ainda por descobrir.
Num século também extraordinário que ele caracterizou por viver sob a ditadura de relativismo, Bento XVI põe o dedo na ferida, aponta a meta e propõe o razoável desafio de a alcançar.
A razão é exaltada pelo homem da Baviera como o valor imprescindível para se alcançar o sentido em todos os aspetos da vida. Nada do que é humano escapa à razão; nada do que que é racional escapa ao humano. E ao entender o Deus transcendente como criador e sentido do universo, sabe que esse entendimento ultrapassa a razão, não esquecendo de notar que é a própria razão que reconhece que há algo que a ultrapassa. Um autor que ele bem conhece tinha uma vez dito que o Deus de Abrãao, Isaac e Jacob é superior à razão mas em nada lhe é contrário.
O seu amor a Cristo sempre o guiou ao ponto de as suas últimas palavras terem sido precisamente “Jesus eu amo-te”. Em toda sua atividade, desde a Congregação para a Doutrina da Fé, aos encontros com os jovens foi sempre esse o ponto. Não faz por menos, e desafia-os à convicção de que “Cristo de nada vos priva do que tendes em vós de belo e grande” (Jornadas Mundiais da Juventude, Colónia, 18 de Agosto de 2005). A sua renúncia foi um passo que o alargou ainda mais, revelando uma humildade pouco comum entre os grandes. É apenas um trabalhador da vinha, outros viriam continuar o trabalho. É o intelectual que, tendo embora sido Guardião da Fé, sabe que a verdade não se possui. Por isso teve por lema do seu pontificado “colaborador da verdade”.
O mundo extraordinário em que vivemos acredita numa razão encolhida, uma razão alegadamente incapaz de certezas de alcance universal. Um mundo que se demitiu de prosseguir a verdade para a trocar por “outras”, que acabam por funcionar como “verdade(s)”, só com a grande diferença de não o serem. Neste ponto lembro o diálogo com o filósofo Habermas, o que revela a abertura de Bento XVI, a certeza de que nada é estranho à razão, por isso inteligível.
A ditadura do relativismo é o ar que se tem respirado desde os anos 60, que ninguém ousa por em causa, como se fosse retrógrado ter certezas. Andar ao sabor dos ventos (Bento XVI abunda em reflexões em Efésios 4, 14) é a postura light, oposta à rigidez que muitos pensaram nele ter encontrado – o Papa Bulldozer e outras imagens ligadas ao mundo mineral, de petrificação. Pelo contrário, as certezas da fé permitem caminhar; se há rigidez é a da firmeza dos passos que se vão dando ao longo da vida, até ao último passo à beira da porta que é a morte.
A este mindset que diminuiu o uso da razão, que acredita na incompatibilidade entre fé e razão, Bento desafia à mudança. Aqui o papa emérito aponta mais uma vez para S. Paulo, para uma meta, uma metanoia ou conversão da mente ou da inteligência (Efésios 4, 23). Renovai-vos! Alargai a razão. O papa é aqui o filósofo, como já tinha sido o seu antecessor, João Paulo II. É um desafio razoável porque é o único que nada põe de lado ou entre parêntesis, nem a morte, nem este desejo tão humano de pedir eternidade. Para si e para aqueles que amamos. Isto é, todos.
Para este grande pequeno, ou pequeno grande, tudo, mas mesmo tudo, “leva à perfeição para glória de Deus, a felicidade dos homens e a salvação do mundo” (Jornadas Mundiais da Juventude, Colónia, 18 de Agosto de 2005). Descansa em paz!