Li com interesse uma crónica recentemente publicada por Henrique Corrêa da Silva, no Expresso, “Worldcoin – ameaça ou oportunidade?”, onde entre outros aspetos, o autor questiona se Portugal quer, e cito, “continuar a ser um país seguidista ou ousaremos arriscar, como souberam fazer os nossos antepassados, e consolidar o nosso lugar cimeiro na inovação tecnológica em blockchain?”.

O artigo é interessante, não tanto pelo seu conteúdo, mas pelo que sinaliza e representa: a ideia generalizada entre muitos, que a mera existência de uma tutela da lei sobre tecnologias emergentes e disruptivas representa um empecilho, um anacronismo que atrapalha a vanguarda e o futuro.

Nos últimos anos temos vivido uma era de avanços tecnológicos sem precedentes, onde a tecnologia nos patrocina diariamente inovações transformadoras. A incorporação das tecnologias emergentes no nosso dia, hoje como no passado, traz consigo uma série de disrupções e oportunidades que não podem ser desvalorizadas ou adiadas. Mas se tecnologias como a blockchain ou a própria inteligência artificial estão a trazer avanços com benefícios consideráveis, é já claro para (quase) todos que também carregam consigo um potencial, ainda difícil de projetar, de danos para as pessoas e para a sociedade, cujos impactos e probabilidades ainda estamos a tentar compreender.

Neste particular, o caso “Worldcoin” é paradigmático. A Worldcoin, para quem não sabe, é um projeto de criptomoeda lançado por Sam Altman, CEO da OpenAI, que aspira a criar uma rede global de identidades e pagamentos. A missão da Worldcoin é ambiciosa e multifacetada, e assenta em três pilares: i) criação de uma identidade digital universal; ii) promoção da inclusão financeira a nível global; e iii) criação de uma rede de pagamentos global baseada em criptomoedas. No portal da empresa pode ler-se: “a Worldcoin foi concebida para ser a maior rede de identidade humana e financeira do mundo (…). A Worldcoin tem como objetivo proporcionar o acesso universal à economia global (…) e estabelecer um espaço em que todos possam beneficiar da era da IA”. Sendo os objetivos apelativos, é relativamente assustadora a ambição da empresa de criação, a nível global, de uma identidade digital única para cada pessoa, chamada “World ID”, onde toda humanidade, incluindo os mais vulneráveis, “poderão beneficiar da era da IA”.

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Para garantir a singularidade de cada identidade e gerar o “World ID”, a Worldcoin utiliza um dispositivo chamado Orb que realiza um scan da íris para verificar que a pessoa é real e única. Defende a Worldcoin que embora num momento inicial seja utilizada a íris, a mesma não é armazenada, sendo antes convertida num código único que não pode ser revertido para recuperar a imagem original. E se este processo de utilização da íris é compreensível na perspetiva da Worldcoin, para assegurar que não há duplicação de identidades na criação da “World ID”, o que acaba por ocorrer, na prática, é a criação de um novo dado pessoal, com todas as características de um dado biométrico. Ora, ao contrário daquilo que (aparentemente) a Worldcoin nos quer fazer pensar, os riscos para as pessoas não se esgotam na utilização da íris, mas estendem-se, naturalmente, à própria “World ID” e suas futuras utilizações, que deverá ser vista, também, como um dado biométrico ou, pelo menos, como um dado com características biométricas (já que permite, ainda que num ambiente restrito, tornar uma pessoa identificável de uma forma precisa e incontestável).

Sem entrar em grandes detalhes jurídicos, por não ser este o fórum adequado, devemo-nos todos questionar sobre se, verdadeiramente, num mundo onde não há almoços grátis, queremos enquanto sociedade alimentar projetos distópicos que aspiram à inclusão financeira de todos em troca do monopólio da gestão das identidades e das transações, eixos que pretendem valorizar com camadas de inteligência artificial. O mundo vive, hoje, sob tutela estatal na gestão das identidades e das transações financeiras. A pergunta que nos devemos fazer, nesta fase, é se a alternativa ao modelo atual passa por entregar o monopólio a um grupo restrito de pessoas deslumbradas com o potencial totalitário das ferramentas que dominam, e se é por este caminho que pretendemos fazer evoluir as nossas sociedades.

Projetos como a Wordcoin não devem ser proibidos, sem mais, devendo dar-se a oportunidade à empresa e aos seus promotores de explicarem bem quais as vantagens e a pertinência do uso de autenticações em blockchain, com hashes únicas, dotadas de características integralmente biométricas. Devemos, em qualquer caso, perceber que aceitando enquanto sociedade soluções como as que a Worldcoin preconiza, num tempo não muito distante será possível associar em larga escala pagamentos e transações a identidades únicas mundiais, detidas por privados que aspiram a poder valorizar toda esta informação com os “benefícios da era da IA”.

Não é só em Portugal – e bem – que a Worldcoin levantou questões aos reguladores. São vários os países que questionam a tecnologia, e mesmo na Alemanha, onde para já a tecnologia não foi objeto de suspensão, não faltarão muitas semanas para que se anunciem as conclusões da avaliação em curso e da moldura sancionatória a aplicar.

O que o caso “Worldcoin” nos mostra é que precisamos – mesmo – de leis sobre o digital, sendo estas uma resposta importante da comunidade às mudanças abruptas que um mundo tecnológico patrocina. As leis sobre o digital ocupam um papel basilar, de mediação em sociedade e de procura de um equilíbrio entre as vantagens da inovação e a tutela dos inúmeros riscos que, desde que há tecnologia, impendem sobre as pessoas. A existência de normas até pode ser, por vezes um empecilho, mas são casos como o da “Worldcoin” que nos fazem lembrar os perigos de um mundo sem lei.