Foi com surpresa que vi a capa da última The Economist. Sobre um fundo amarelo vivo, um púlpito de madeira crivado de flechas e um título: “The Threat from the Iliberal Left”.

Teria a Economist finalmente descoberto a existência de uma “esquerda iliberal”? E logo de uma esquerda iliberal ameaçadora? Leio regularmente a revista, na sua constante apologia do globalismo e correspondente ataque aos “iliberais identitários” e populistas, com Trump e Orbán à cabeça; que dedicasse agora um número à descoberta e à ameaça da “esquerda iliberal” pareceu-me digno de nota.  Um autêntico despertar.

A “novidade” para a qual The Economist tenta alertar os seus leitores mais distraídos é a existência de uma forte corrente de “esquerda iliberal”, nada e criada nos santuários do liberalismo histórico – da liberdade religiosa, da liberdade de expressão, de representação popular. É aí, sobretudo nas universidades da Califórnia e em algumas da Costa Leste, que se desenvolve e estabelece hoje uma cultura neo-puritana de proibição, punição e cancelamento, a lembrar o castigo e a humilhação de Hester Prynne em The Scarlet Letter, de Nataniel Hawthorne, ou o banimento dos dissidentes Roger Williams e Anne Hutchinson, de Massachusetts Bay.

The Economist faz um bom levantamento das origens filosóficas e políticas desta ofensiva e da estratégia seguida pelo wokismo – um movimento surgido nos Estados Unidos para “acordar” ou “despertar” a opinião pública para a discriminação racial depois da Grande Depressão, mas que, entretanto, se multiplicou para dominar a Terra, “impondo uma ortodoxia” e intimidando e punindo os dissidentes.

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É certo que os pastores do novo dogma e os seus prosélitos já não podem amarrar os dissidentes ao pelourinho ou enforcá-los e queimá-los fisicamente, mas vão-no fazendo mais requintadamente e como podem, recorrendo a novas a variadas formas de alcatrão e penas – encorajando e premiando a denúncia, caluniando os pecadores públicos, segregando-os, calando-os, expulsando-os exemplarmente.

Assim, segundo The Economist, nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha 70 a 80% dos académicos não-alinhados confessam-se hostilizados pelos colegas e pelos estudantes e 68% dos estudantes admitem que não dizem o que pensam, não vão os colegas considerar as suas opiniões ofensivas.

Ou seja, há uma “esquerda iliberal” que, puritana e inquisitorialmente, tem vindo a entreter-se a traçar limites à livre expressão. E o número de endoutrinados ou de noviços é já significativo: 40% dos nascidos já neste milénio (os chamados “millennials”) acham que devem banir-se teses e opiniões ofensivas para “as minorias”; e, sempre de acordo com The Economist, estão também zelosamente empenhados na denúncia, julgamento, punição e expulsão dos hereges.

Em 2018 Colin Wright, da Penn State University, escreveu dois artigos em que defendia que o sexo era uma realidade biológica e não uma construção social. Blasfemo, desmancha prazeres, machista, transfóbico, racista; pronta acusação de prática de “ciência racialista” e consequente expulsão da universidade. Ainda teve a solidariedade privada de alguns colegas, mas ninguém se atreveu a contratá-lo.

Para a promoção da diversidade

Outra das actividades de eleição da dita esquerda iliberal é a “promoção da diversidade” mediante a censura de livros considerados perigosos. A actividade envolve “releitura crítica”, escrutínio de fobias através dos tempos, denúncia dos silêncios ou excessos dos clássicos (“clássicos” para quem?  Para “a maioria opressora”, evidentemente) e estabelecimento de um Index. E as famosas queimas de livros pelos nazis também voltaram: no Canadá, em 2019, milhares de livros de banda desenhada – do Tintim, do Asterix, do Lucky Luke – foram para a fogueira por desrespeito a muitas, variadas e imaginadas populações autóctones.

Cada vez mais frequentemente se cancelam projectos e edições ou se condiciona a sua execução, tradução ou publicação à remoção de determinadas premissas e expressões e à sua substituição por premissas e expressões mais ortodoxas.

Alexandra Duncan, uma norte-americana branca, renunciou à publicação de Ember Days, um romance escrito do ponto de vista de uma mulher negra, depois de lhe terem chamado à atenção que estava a incorrer no crime de “apropriação cultural”. A retratação de Duncan, em forma de autocrítica (que pode ver-se na íntegra em What the Cancellation of Alexandra Duncan’s Ember Days can Teach Us About Allyship) não é muito diferente em estilo e em conteúdo das “confissões” dos réus dos processos do estalinismo dos anos 30.

É assim que Duncan se arrepende, se penitencia, se autoflagela e promete não voltar a narrar, submetendo-se ao processo de reeducação em “Allyship” que poderá, eventualmente, conduzi-la à salvação (caso os escrupulosos representantes da comunidade Gullah Geechee e “os colegas”, uma vez concluído o processo, venham a aceitá-la como “aliada”):

Alguns colegas, preocupados, chamaram-me à atenção para a premissa do meu livro… fazendo-me notar que era ofensiva. A cultura Gullah Geechee foi sistematicamente reprimida e apagada, e eu, na minha irreflectida tentativa de escrever um livro que fosse inclusivo das culturas de Charleston e de Lowcountry, onde o enredo decorre, participei nessa mesma repressão. A minha limitada concepção do mundo, de pessoa branca, levou-me a crer que podia descrever e encarnar uma personagem dessa cultura.

O facto de não ter percebido os problemas que essa minha premissa inicial levantava ao longo da investigação que fiz para o livro, era, já de si, uma inequívoca prova de que nunca poderia ser eu a contar a história. Estou profundamente arrependida e envergonhada por ter cometido um erro desta gravidade e espero que as minhas acções não afectem negativamente a luta por uma maior diversidade na literatura infantil… Tenho um enorme respeito pelos autores e pela comunidade Gullah Geechee e pensar que o meu trabalho os possa ter prejudicado é para mim uma fonte de grande consternação”.

E voltou-se à pré-exigência de conformismo ideológico. Na Universidade da Califórnia, os concorrentes a lugares académicos têm de preencher declarações sobre como pensam “promover a diversidade, a equidade e a inclusão” – e são admitidos ou recusados mais em função desses bons propósitos do que de outros requisitos curriculares. Vale a pena ler a carta de demissão de Peter Boghossian, da Portland State University, um pensador e professor de Filosofia, ateu e de esquerda, que ousa questionar a ortodoxia e blasfemar contra a transformação das universidades de “bastions of free thinking” em “social justice factories”, cuja missão parece não ser já a de ensinar estudantes a pensar, mas a de treinar activistas na arte de bem macaquear “as certezas morais dos ideólogos.”

Da blasfémia ao “crime de ódio”

Sempre seguindo The Economist, o artigo “Imposing Ortodoxy: Echoes of the confessional state”, lembra que na Escócia, pátria do Iluminismo setecentista de Edimburgo, foi agora abolido o crime de blasfémia, um crime de que não havia participações desde 1843.

Mas talvez porque o sagrado seja agora outro ou porque se queira instituir um novo sagrado, ao mesmo tempo que se suprimiu a blasfémia, instituiu-se, em Março deste ano de 2021, o “crime de ódio”.  E o que é o “crime de ódio”? É todo o acto “verbal ou físico”, com origem no “preconceito”, que possa “prejudicar a coesão da sociedade” ao ofender “as comunidades minoritárias”. E o diploma que o instituiu na Escócia encoraja os ofendidos a comunicarem por email ou por telefone qualquer manifestação de “ódio às minorias”.

As vítimas deste crime são todos os que, por motivos “de deficiência, de raça, de religião, de orientação sexual ou de identidade transgénica”, se sintam ofendidos por terceiros. E ao modo neopuritano, quem tenha conhecimento das ofensas é encorajado a denunciar os prevaricadores: “We want you to report it.” Licença para apedrejar, portanto.

O crime de blasfémia consistia em dizer ou escrever palavras contra Deus e a religião, com intenção de causar perturbação e desordem na comunidade. O “crime de ódio”, que, segundo The Economist, pode levar até sete anos de prisão, é mais vasto e abre toda uma panóplia de novas possibilidades.

Sem exageros apocalípticos, que acabam por ser dissuasores da resistência, não posso deixar de chamar a atenção para a vaga censória que, sob vestes sofisticadas e para proteger a população da “desinformação” e do “preconceito”, se está a criar no Ocidente. Como não podia deixar de ser, a “desinformação” e o “preconceito” que “põem em risco a Democracia” vêm sempre e só de heréticos que actuam sobretudo nas “redes sociais” e são manipulados por fascistas foragidos de Saló, “supremacistas brancos” do Klan, e, entre nós, por hordas de reaccionários, saudosistas do salazarismo e machistas homofóbicos. Há, por isso, que proibir e reprimir os veículos desses agentes do Mal.

E como agem os agentes do Mal para agredir a Democracia? Caluniando os políticos, maculando os profissionais dos media, enxovalhando os académicos progressistas. E, claro, disseminando o discurso de ódio. Então, para defender “as minorias” de algum povo enganado por falsos pastores, vá de pôr em vigor uns direitos humanos “para a era digital” e de criar entidades “exógenas” para proteger “as populações” das massas ignaras e seus instigadores, com o apoio dos observatórios de onde cientistas antifascistas, independentes e objectivos fazem “ciência” e promovem “o progresso”.

Despertar

Com a religião dos “acordados” à solta, com os fariseus humanitários entretidos a atirar pedras a S. Paulo e os comentadores preocupados com a repressão na Hungria e indignados com os desmandos de Trump (mas à procura do “bom talibã”, pragmático e moderado e enternecidos com o Biden da debandada de Cabul), convém que todos despertemos. E se estivermos bem acordados não podemos deixar de ver que as leis contra os “crimes de ódio”, se aprovadas e aplicadas, só podem querer dizer uma coisa: que está em marcha a instauração de uma cultura de cancelamento e de censura que, em nome de um puritanismo pseudo humanitário e multicultural, se prepara para proibir toda e qualquer diferença de opinião. E para inibir a criação.

Porque toda a criação literária, dos poemas homéricos às cantigas de escárnio e maldizer e aos remoques de Sancho no burro, de Joyce a Céline, das sátiras romanas ao Gargântua e Pantagruel de Rabelais, está cheia de conceitos, de expressões, de palavras, de vida, de humanidade que não cabe nem passa no crivo censório dos observadores e analistas da “desinformação” e do “discurso de ódio”.

E Shakespeare? E Quevedo? E os libertinos do século XVIII, de Laclos a Sade? E o discurso conservador, ou mesmo reaccionário e pessimista, subjacente à prosa de Chateaubriand, de Baudelaire, de Flaubert?

Antevejo grande excitação nos intelectuais e profissionais da observação, dos denunciantes das redes sociais, dos activistas da neutralidade e da inclusão, todos a compilar curriculum e a mostrar serviço para a grande corrida às novas comissões de censura pagas pela UE, pelo Governo, pelos municípios, para combater o racismo, a intolerância, enfim, “o discurso de ódio”.

Só espero que a não-esquerda, ou o que dela resta, esteja pelo menos tão atenta ao que por aí anda e ao que aí vem como os liberais da The Economist –  que tardaram a identificar a ameaça mas que o fizeram. Até porque, mais do que nas tricas eleitorais, é aí e em tudo o que tem que ver com a batalha das ideias e a resistência cultural que se joga o futuro.