Não é de estranhar que, num mundo secularizado, se duvide da existência de anjos e demónios. Mas já é mais surpreendente, senão mesmo escandaloso, que sacerdotes católicos, alguns até com grandes responsabilidades em reconhecidas e beneméritas instituições da Igreja, ponham em causa a sua realidade e acção. Foi o que parece ter acontecido quando, na edição de 31 de Maio passado do jornal espanhol El Mundo, se referia o diabo como se fosse uma criação humana, simbólica do mal.
As polémicas afirmações foram as seguintes: “No meu ponto de vista, o mal faz parte do mistério da liberdade. Se o ser humano é livre, pode escolher entre o bem e o mal. Nós, cristãos, acreditamos que fomos criados à imagem e semelhança de Deus, portanto Deus é livre, mas Deus sempre escolhe fazer o bem, porque é todo bondade. Fizemos figuras simbólicas, como o diabo, para expressar o mal. Os condicionamentos sociais também representam essa figura, pois algumas pessoas agem assim porque estão num ambiente onde é muito difícil fazer o contrário”.
Muito embora se tenha depois esclarecido que o autor dessa ambígua declaração “crê no que a Igreja crê”, talvez persista a dúvida sobre o que a Igreja realmente acredita em relação ao demónio, bem como sobre a liberdade dos fiéis sobre esta matéria. Ou seja: o diabo realmente existe? Em caso afirmativo, a sua existência não contradiz a perfeição e bondade de Deus? E, ainda: um católico pode divergir dos ensinamentos da Igreja sobre este aspecto particular?
A fé da Igreja, embora seja pessoal em cada um dos fiéis, é objectiva e universal, ou seja, está determinada pela Bíblia e pela Sagrada Tradição, segundo o magistério eclesial, intérprete autêntico da revelação sobrenatural. Os fiéis são libérrimos de o serem ou não, mas não em relação ao conteúdo da fé: não se pode ser católico ‘a la carte’ ou ‘à vontade do freguês’, mas só na Igreja e segundo a sua doutrina. Todos os católicos estão obrigados, por uma questão da mais elementar coerência, a professar todas as verdades de fé que fazem parte da doutrina cristã. Como dizia São João Paulo II, quem não crê no demónio, não crê no Evangelho. Negar, consciente e voluntariamente, uma verdade de fé é um acto herético, que implica a excomunhão, ou seja a exclusão da Igreja. Como nem todas as questões teológicas estão decididas de forma definitiva, há liberdade de opinião entre os católicos em relação a esses aspectos doutrinais não definidos dogmaticamente, mas não em relação aos que, pelo contrário, fazem parte integrante do depósito da fé.
Entre estes conteúdos essenciais sobre os quais não é lícito a nenhum católico discordar ou duvidar, está precisamente a afirmação da existência de Deus, que é um só na trindade de pessoas e cuja única essência é amor. Como muito acertadamente se escreveu no El Mundo, “nós, cristãos, acreditamos que fomos criados à imagem e semelhança de Deus, portanto Deus é livre, mas Deus sempre escolhe fazer o bem, porque é todo bondade.” A questão que se põe é, então, a da existência do mal: se Deus “é todo bondade”, como explicar a realidade do mal?! Se os homens foram criados à imagem e semelhança de Deus, que “é todo bondade”, como se entende a maldade humana?!
A resposta decorre de uma outra realidade, a que também se aludiu no mesmo texto: a liberdade. Deus é livre e, como é perfeito, a sua liberdade é indefectível na escolha do bem. As criaturas inteligentes por ele criadas, como os anjos e os homens, são também livres mas, como são seres limitados, a sua liberdade não é infalível. Quer isto dizer que, embora estejam natural e sobrenaturalmente inclinados para o bem, podem, por defeito, optar pelo mal, enquanto o seu conhecimento e vontade forem imperfeitos. Assim se explica que alguns anjos se tenham condenado, bem como alguns homens, embora criados à imagem e semelhança do Criador. O pecado é a opção consciente e voluntária do mal, que é irreversível pela condenação eterna. Os demónios e as almas que estão no inferno já não se podem arrepender, e os anjos e santos já não podem pecar, não porque tenham deixado de ser livres, mas porque a sua liberdade deixou de ser imperfeita, precisamente pela graça da bem-aventurança celestial.
É neste sentido que se devem entender as tão polémicas declarações: “Fizemos figuras simbólicas, como o diabo, para expressar o mal”. Ou seja, as nossas representações do diabo são de facto “figuras simbólicas”, mas não o próprio demónio, cuja realidade e actuação são verdades reveladas nas Sagradas Escrituras. Como se afirma no Catecismo da Igreja Católica: “o Mal não é uma abstracção, mas designa uma pessoa, Satanás, o Maligno, o anjo que se opõe a Deus” (nº 2851). Por vezes, diz-se que alguma pessoa ou coisa ‘é o diabo’, para assim expressar alguém, ou algo, que é muito mau, mas é óbvio que essas expressões têm que ser entendidas em sentido figurado; do mesmo modo como quando se diz de alguém que ‘é um anjo’, porque é muito bom, ou que um estado de muita felicidade ‘é o céu’.
O demónio é real, existe e actua … graças a Deus! Felizmente, também ele está sob o poder do Criador, como criatura que é: todos os seres estão sob o poder de Deus, único Senhor do universo. Por isso, o crente sabe que, mesmo não podendo negar, sem cair em heresia e incorrer na respectiva excomunhão, a existência e acção do demónio, não deve temê-lo, porque mais pode, com efeito, o amor de Deus.
Bem vistas as coisas, a existência do demónio é até bastante positiva, porque é prova da nossa liberdade, o maior dom de Deus à humanidade, criada à sua imagem e semelhança. Também é uma muito gratificante explicação para o mal que descobrimos no nosso coração, como reconhecia um converso que, antes de ser católico, pensava que as tentações eram expressão da sua maldade intrínseca e, por isso, detestava-se a si mesmo. Quando soube que, afinal, eram coisas do diabo, ficou tão aliviado que disse que, a existência do demónio e das tentações, são das verdades mais consoladoras da fé cristã!
Nota final: Sentidos pêsames às famílias das vítimas dos incêndios, bem como uma palavra de solidariedade para quantos neles perderam todos os seus bens. Por ambos rezei muito especialmente nestes dias. Faço também meus os votos de todos nós: é necessário que tragédias desta natureza não aconteçam nunca mais!