O filme Oppenheimer marcou a época balnear e continua a ser um sucesso de bilheteira como o biopic (filme biográfico) mais rentável de sempre. Em Portugal, mais de 500 mil pessoas já o terão visto, o que não deixa de ser surpreendente se tivermos em consideração a duração do filme e a tecnicidade do tema. O sucesso parece prender-se não só com a recente atualidade das preocupações nucleares devido ao conflito na Ucrânia, mas também com o facto de visar um dos temas que mais apaixona o homem moderno: quais são os limites do conhecimento científico? Ou, por outras palavras, até onde deve a ciência ir?

O tema alimentou a literatura de ficção científica desde que Mary Shelley, filha do filósofo anarquista William Godwin e da filósofa feminista Mary Wollstonecraft, publicou Frankenstein em 1818, uma obra clássica sobre a relação entre criador e criatura e que se tornou uma referência literária. É interessante notar como o título do livro tem vindo a ser reduzido: a versão original lia Frankenstein; or, The Modern Prometheus, usando a expressão do filósofo Immanuel Kant para se referir a Benjamin Franklin. O comentário de Kant, que consta de um dos escritos sobre o terramoto de Lisboa, resultava das experiências que Franklin vinha a desenvolver com eletricidade, numa espécie de paralelo com o titã que roubou o fogo aos deuses para o dar aos homens.

Embora usar o mito de Prometeu não permita uma comparação rigorosa, pois Prometeu não é mortal e terá, de acordo com algumas versões, ajudado ele próprio a criar os humanos, ainda assim a sua invocação parece convocar uma repetida lição: aqueles que desrespeitam as resoluções de Zeus serão castigados; o mesmo é dizer: aqueles que se esquecem de que são apenas humanos serão recordados dessa condição. Ou, nas palavras de Kant:

“Do Prometeu dos Novos Tempos, Franklin, que quis neutralizar a trovoada, até àquele que pretende extinguir o fogo na oficina do vulcão, todos estes projetos são testemunho de uma audácia do homem que transcende infinitamente a sua capacidade de realização, conduzindo-o, em derradeira análise, à humilhante lembrança – da qual, justamente, deveria sempre partir – de que, por muito que se esforce, jamais passará de um ser humano.” (itálico meu)

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Não surpreende por isso que o livro biográfico de 2005 em que se baseia o filme Oppenheimer recupere a metáfora de Prometeu: American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer, vencedor do Pulitzer Prize for Biography or Autobiography em 2006. A lição prometeica mantém-se: a ambição desmedida de realização é seguida de castigo, com Oppenheimer a expressar sempre remorsos pelas consequências das suas ações, o que terá justificado a aceitação das audições humilhantes a que foi sujeito para a avaliação das suas convicções comunistas.

Na verdade, a utilização da arma nuclear é um tema clássico na Filosofia, nomeadamente nas áreas de Ética, por permitir exemplificar o diferente raciocínio que está subjacente a uma lógica deontológica (a ética kantiana dos princípios e valores absolutos) por oposição a uma lógica consequencialista (que faz depender a moralidade das ações das suas consequências e é tipicamente representada pela teoria utilitarista de Bentham e Mill). Perspetivado desta forma, o problema coloca-nos no lugar de Harry Truman, o presidente norte-americano que tomou a decisão de utilizar as bombas em Hiroshima e Nagasaki, preterindo o princípio absoluto de não matar pela avaliação das consequências da utilização daquele instrumento mortífero.

Truman terá replicado a Oppenheimer que o sangue estava nas suas mãos e não nas mãos do cientista, o que, embora factualmente verdadeiro, não nos deve permitir fugir à verdadeira, e mais difícil, questão: a de saber se todo o conhecimento ou desenvolvimento científico é admissível. Esta pergunta é particularmente importante no domínio da bioética, o que torna as cadeiras de ética fundamentais nas áreas das ciências da saúde; e devem tornar-se obrigatórias também nas áreas das engenharias, em especial nas de crescente popularidade, como as ligadas ao desenvolvimento da inteligência artificial.

Como muitos autores fazem notar, trata-se de uma pergunta especificamente moderna, uma vez que a modernidade inaugurou, em particular com Francis Bacon, um paradigma de controlo da natureza. De acordo com o filósofo inglês do século XVII, a velha lógica aristotélica deveria ser abandonada em detrimento de um novo método capaz de retirar à natureza, violentamente até, todos os seus segredos. E esse novo paradigma acalentaria a esperança de uma nova liberdade, a liberdade de nos emanciparmos da própria natureza – pelo que os avanços científicos são tendencialmente percecionados como sinal de progresso e, nessa medida, inevitáveis.

E se, durante o século XIX, a ciência foi acalentando esperanças de conseguir criar um mundo melhor, os desastres do século XX levaram a que, nas suas últimas décadas, os países fossem legislando sobre os limites da investigação científica. Pensemos no diploma aprovado pelo Conselho da Europa, a Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina (mais conhecido como Convenção de Oviedo), que estabelece regras e limites que visam proteger a dignidade humana. Esta convenção demonstra que não só é possível concretizar limites, como ainda estabelecer interditos, como acontece com o protocolo adicional que proíbe a clonagem de seres humanos. Também as experiências com embriões utilizando a ferramenta CRISP-9 são altamente censuráveis, tendo levado a que o cientista chinês He Jiankui fosse detido até muito recentemente (ainda assim, a técnica parece estar a ser usada para tratar certas doenças, como podemos aprender no documentário Make people better).

Não estamos, assim, condenados à inevitabilidade do desenvolvimento científico e os cientistas devem estar cientes de que o dilema da ciência é sua responsabilidade (Oppenheimer e os seus colegas não estavam obrigados a serem destruidores de mundos); simultaneamente, a sociedade deve zelar para que a ambição científica não conduza a um mundo não desejado. E é por essa razão que devemos perguntar: queremos realmente o mundo que resultará das investigações em torno de úteros artificiais que, na Europa, têm beneficiado de amplo financiamento europeu? Como sempre acontece, a justificação apela aos nossos instintos mais básicos: permitirá a bebés prematuros ter um ambiente replicador do útero materno, o que aumenta as probabilidades de sobrevivência. Mas as aplicações que podem resultar desta ferramenta tecnológica e as implicações para o papel da mulher e da família e do próprio modo como a sociedade se organiza e se perceciona representam um mundo novo. Dificilmente será um mundo melhor.