Uma questão importante que não está a ser suficientemente discutida a propósito das buscas a Rui Rio e ao PSD é esta: sendo os grupos parlamentares (GP) órgãos dos partidos deve o dinheiro destes ser considerado e gerido como dinheiro dos partidos? Já sabemos que a lei aparentemente estabelece que não, mas que a prática de todos os partidos tem sido a contrária, ou seja, no sentido da fungibilidade dos recursos. Argumentarei que a distinção entre dinheiro dos GP e dos partidos é necessária, e útil, mas que as leis devem ser melhoradas pois existe uma confusão entre duas leis que regulam o apoio financeiro público aos grupos parlamentares de forma diferente.

Antes disso convém esclarecer que corroboro a opinião largamente maioritária que esta ação do ministério público (MP) foi desproporcionada nos meios, desadequada nos objetivos (que deveria ter incluído todos os partidos pois já era do conhecimento público que tinham práticas semelhantes), e que choca pela violação do segredo de justiça e da investigação com a presença de uma estação de televisão no local (embora com a atenuação do espaço de tempo entre quando alegadamente bateram à porta de Rui Rio, às 7h da manhã e quando a abriu 10h). Dir-se-á que com tal envergadura era impossível nada sair para a comunicação social. Ora, mais um argumento para não terem sido mobilizados tantos agentes.

Digamos que a intenção do legislador à questão que aqui abordamos é obviamente que não. Se fosse para ser considerado dinheiro dos partidos, tudo no mesmo saco, não havia dinheiro afeto a diferentes tipos de utilizações: subvenções gerais para os partidos com mais de 50.000 votos, subvenções específicas para campanhas eleitorais (legislativas, europeias e autárquicas) e subvenções para grupos parlamentares. Esta consignação de certas receitas a certas despesas tem precisamente como objetivo garantir que há recursos para as diferentes atividades. Imaginemos que tal distinção não existia? Um partido poderia gastar quase todo o dinheiro da subvenção pública (que nesse caso seria única) em campanhas eleitorais e quase nada em trabalho parlamentar e é isso que se pretende evitar.

Onde a porca torce o rabo é que o legislador regula em duas leis diferentes a mesma coisa, embora de maneiras diferentes e indexantes diferentes (IAS e SMN). A lei de Organização de Funcionamento da AR (LOFAR ver art. 46), regula os “gabinetes dos grupos parlamentares” e define critérios claros de apoio financeiro ao grupo paramentar que são função do número de deputados. As aspas não é apenas porque é citação da lei, é porque não é apenas grupos parlamentares (GP), mas também deputado único representante de partidos (DURP) e “deputados independentes” ou não inscritos (NINSC). Note-se que a LOFAR é uma lei cujo objeto é regular os instrumentos de gestão financeira e técnica das atividades da Assembleia da República. É esta lei que, presumo, que a AR utiliza para decidir o apoio financeiro que dá aos GP, aos DUP e aos NINSC.

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Há, porém, outra lei, a Lei de Financiamento dos partidos políticos  que é mais geral, mas que também estabelece uma norma (LFPP ver artº 5º numero 4) de uma subvenção a GP, DURP e NINSC, com outros critérios, mas sobretudo com outro alcance pois diz que esta é uma  “subvenção para encargos de assessoria aos deputados, para a atividade política e partidária em que participem e para outras despesas de funcionamento”, ou seja inclui atividade parlamentar e atividade politica partidária em geral. Se eu fosse um advogado de defesa do PSD (ou de outros partidos que venham a ser incluídos num eventual processo crime por parte do Ministério Público) centraria a minha defesa precisamente na LFPP.

Ora o que isto parece indiciar é que, dada esta inconsistência legislativa, os senhores deputados têm um trabalho a fazer pois tudo o que tem a ver com o apoio aos grupos parlamentares devia estar na LOFAR e não na LFPP, que apenas deveria mencionar que faz parte do financiamento da atividade política de “partidos políticos” o apoio aos grupos parlamentares regulado em diploma próprio (remetendo precisamente para a LOFAR).

Dito isto, importa esclarecer que tem havido nos últimos anos um downgrading do apoio ao trabalho dos deputados que têm, supostamente, três funções essenciais: a de atividade legislativa, a de fiscalização do executivo e a de ligação com os problemas do território do círculo pelo que foram eleitos. Para isso deveriam ter, cada um, um assessor. Aliás era isso que constava no Estatuto do Deputado (ED), até à sua revisão recente, na XIII legislatura em que exerci funções de deputado. O ED estipulava que era direito de cada deputado ter um assessor. Esse direito foi suprimido com base no argumento de que isso nunca foi praticado pelo que mais valia eliminar esse direito. E assim foi suprimido. Hoje argumenta-se também que não haveria espaço para esses assessores. Pois bem, se houvesse vontade política esse espaço criar-se-ia. Mas parece não haver.

Convém aqui fazer uma declaração de interesses. Como é sabido, como independente eleito nas listas do PS, decidi integrar o grupo parlamentar do PS. Sim foi uma decisão que a Helena Roseta e eu próprio tomámos na primeira reunião do GP do PS.

Participei ativamente durante cerca de três anos da XIII legislatura no GP PS. Por razões conhecidas acabei a legislatura como deputado não inscrito. É público que os grandes partidos (PS e PSD) têm assessores para as comissões parlamentares, e em particular o Presidente do Grupo parlamentar também, mas que os restantes deputados não têm assessores e que grupos de deputados partilham a mesma secretária. É também público que quando me tornei deputado não inscrito constituí um gabinete — precisamente com os recursos que a AR dá aos NINSC – com dois assessores em part time e um em full time. Ou seja, passei de uma situação em que partilhava uma secretária, com vários outros deputados, uma assessora e um assessor nas duas comissões em que era membro efetivo (Finanças e transparência), para um apoio em termos de recursos humanos muito maior. Isto, que é público, ilustra o efeito que a sangria que a esmagadora maioria dos partidos faz (usando dinheiros consignados aos deputados e ao grupo parlamentar, para outros fins partidários) tem. Diminui a qualidade do trabalho parlamentar pois é óbvio que mais assessores acrescentariam significativo valor ao trabalho parlamentar, sobretudo quando lhes fosse dada oportunidade de trabalhar os dossiês, de ser ouvidos e de participar no trabalho quer legislativo quer de fiscalização política.

Há apenas um caso em que considero que os recursos humanos dos deputados e do partido devem ser partilhados pois não é possível uma distinção funcional. Trata-se dos assessores de comunicação. Em relação a todos os restantes casos é muito fácil fazer a distinção entre o que é, e quais as funções de um assessor parlamentar e quais as funções de um funcionário do partido. As duas coisas devem estar claramente separadas nas leis. A LOFAR deve ter os critérios do apoio financeiro aos assessores exclusivamente parlamentares, pois trata-se de atividade parlamentar, enquanto que a LFPP deve ter todos os restantes apoios financeiros à atividade política e partidária.

Temo, porém, que esta quase unanimidade em torno da condenação da forma de atuação do ministério público, que no geral subscrevo, sirva para fundamentar uma alteração legislativa que diminua ainda mais o apoio à atividade parlamentar dos deputados e a qualidade da nossa democracia.

PS. Para quem esteja interessado neste tópico no meu livro “A Democracia em Portugal: como evitar o seu declínio” (pp. 192-195) apresento dados sobre a subvenção geral anual dos partidos políticos, das campanhas eleitorais e dos grupos parlamentares da Assembleia da República, e das Assembleias Legislativas Regionais dos Açores e da Madeira.