No site da Presidência da República não encontro o texto do discurso presidencial no 25 de Abril. Ou está lá e não o vislumbro, mas era de esperar que fosse fácil nele tropeçar, ou não está e deveria porque o site, que abunda em fotografias e vídeos de Sua Excelência (na verdade com tal profusão e detalhe que se estranha não o vejamos a lavar os dentes), bem poderia conter, ainda que numa secção separada, textos: a página da Presidência da República na internet não é bem o YouTube.

De modo que fui ouvir e fiquei com uma impressão geral. Negativa, lamento dizê-lo, mais ainda porque a peça foi aplaudida de pé, pareceu-me que por todas as bancadas.

Percorrendo a imprensa, é um imenso caudal laudatório, paroxístico, por exemplo, neste caso: “O discurso do Presidente, bem para lá da sua erudição, é um discurso de coragem e de inteligência, que arrasa a ideia absurda de que o passado pode ser depurado com os julgamentos do presente”. Fantástico: o director acha que a enunciação do abc da análise histórica “arrasa” a ideia “absurda” que ele, Manuel Carvalho, provavelmente tinha e agora já não tem, de que devemos interpretar o passado como se os seus agentes tivessem conhecimento de factos e ideias que só aconteceram, e nasceram, depois; a coragem não se vê onde esteja porque para agradar a toda a gente não é precisa, antes um tipo particular de indefinição; e inteligência sim, no caso infelizmente apenas a que propicia o sucesso na manutenção do status quo.

Isto é jornalismo do bom, em que pesem lá essas notícias de os apoios estatais (isto é, do contribuinte) ajudarem a que não morram de esgotamento títulos prestigiados. Da classe política não apreciei reacções posteriores, devido à minha natural aversão a exercícios de autoflagelação, mas calhou ler esta notícia sobre declarações do presidente do Governo Regional dos Açores:

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Creio que fez um discurso brilhante sobretudo para desvalorizar o contexto de circunstância, mas valorizar a substância do que é a história da democracia e da liberdade e o que representa a unidade nesta conquista”, sublinhou o social-democrata José Manuel Bolieiro, numa entrevista no jornal da RTP 3.

Não me apercebi de que o discurso tenha valorizado a substância, nem aliás do que Bolieiro quis dizer, de modo que não li o resto, por medo de que me escasseassem as luzes para entender.

Sem texto, como disse a princípio, limito-me a comentar alguns excertos, que encontrei aqui, e deixo para o fim uma apreciação genérica:

O 25 de abril, disse, foi “o resultado de décadas de resistência e grito de revolta de militares, que sentiam combater sem futuro político visível ou viável”.

As “décadas de resistência”, lamento informar, não tiveram qualquer importância para a eclosão da quartelada, o “grito de revolta” sim. Façamos a nós mesmos a seguinte pergunta: se, num mundo contra-factual, nunca tivessem existido comunistas, os principais depositários da resistência, por serem sobretudo eles que tinham força anímica para suportarem os riscos e inconvenientes da oposição ao regime, o 25 de Abril (o dia inicial inteiro e limpo, não o que se passou depois) teria ou não teria tido lugar do mesmo modo? Deixo a resposta aos leitores argutos.

Marcelo continuou, salientando a importância de se “olhar com os olhos de hoje e tentar olhar com os olhos do passado”, explicando que nos olhos de hoje há uma “densidade personalista, de respeito da dignidade da pessoa humana, da condenação da escravatura e do esclavagismo, na recusa do racismo e das demais xenofobias que se foi apurando, representando um avanço cultural e civilizacional irreversível”.

Da imaginária originalidade desta reflexão já falei acima, ainda que o lembrete seja útil para os movimentos contemporâneos, originados nos Estados Unidos, de um absurdo ajuste de contas com o passado, de que são representantes entre nós o dr. Mamadou, a dra. Joacine e outros peso-pluma do pensamento de esquerda mais ou menos interesseira e lunática. Era a eles que o Presidente se estava a dirigir? Seria gastar cera com mau defunto. De modo que não se está bem a ver quem seriam os destinatários da aula de introdução ao curso de História – só se forem aqueles, e foram muitos, e ilustres, que no 24 de Abril conviviam pacificamente com o regime deposto e nele teriam feito carreira se não tivesse havido o percalço da revolução.

Desenvolvimento, liberdade e democracia sempre foram imperfeitos e, por isso, não plenos”, continuou. “Não há, nunca houve, um Portugal perfeito nem condenado. Há um só Portugal, que amamos, para além dos claros e escuros”, rematou.

Pois sim, estamos transidos de amor, lá isso não há que negar. Mesmo que os excessos (“os Estados Unidos da América são um grande país, mas Portugal ainda é maior”) desse abrasador sentimento talvez levassem Eça, se fosse vivo, a achar que a declaração encaixava numa das suas definições de patriotaças, patriotinheiros, patriotadores ou patriotarrecas. E de escuros ouvimos nada, que o dia não é de depressão – nunca é, com Marcelo.

Isabel Pereira dos Santos, amiga de muitos duelos, escandalizou-se no Facebook com a apreciação (deveria talvez dizer depreciação) com a qual respondi ao seu post em que considerava o discurso “absolutamente brilhante”. Abaixo a transcrevo:

Um discurso que agrada a toda a gente só pode ser ou uma coisa de tal modo brilhante que Marcelo não a poderia produzir ou um balde de água chilra embrulhado em vacuidades consensuais suficientemente doutorais e pedantes para que as pessoas vejam o que lá não está. Aposto singelo contra dobrado que tenho motivo para uma crónica, para gáudio dos meus 13 leitores.

Bem, não fui ler pelas razões que já enunciei, mas fui ouvir. Uma boa oração, o homem sabe escrever e discursar, tiro-lhe o chapéu por isso e porque, ao contrário do ausente Cavaco, não desprezo a retórica, menos ainda a parlamentar. Compreendo o aplauso unânime: está lá uma palavra de compreensão para todos os derrotados e perdedores, uma de congratulação para todos os vencedores, uma de esperança para todos os desencantados, uma de homenagem aos que no regime anterior queriam substituir a ditadura por outra pior, e uma de admiração pelos heróis do 25 do quatro. Está tudo isto, e tudo isto com brilho. O que não está é a quartelada que o 25 de Abril foi, a sua captura por quem tinha a estratégia, e os conhecimentos, que aos capitães faltavam, o falhanço do escopo desenvolvimentista, o futuro penhorado pela dívida, a alienação do módico de independência que uma pequena nação pode ter e a captura do aparelho de Estado por uma casta que comprou, com dinheiro alheio, votantes cativos. A defesa da perspectiva histórica correcta (isto é, não ver o passado com os olhos das ideias e factos que só nasceram e aconteceram depois) é oportuna mas relativamente vulgar – o género de coisa que impressiona deputados e jornalistas, uns e outros geralmente com uma ilustração por demais escassa.

E foi isto. Peço desculpa por não me associar às comemorações. Aliás, se vivesse em Lisboa, ainda me meteria em trabalhos por não usar máscara na rua, não tendo da liberdade que Abril nos trouxe a mesma concepção de quem as usa.