Depois de um dia de paragem, nada melhor que um jogo de estrondo. Sentei-me com a firme intenção de observar os desempenhos de Javier Mascherano e de N’Golo Kanté. O médio do Chelsea é o “canário na mina” do futebol de França. Pode tomar-se o pulso à equipa olhando para o que ele faz. Por Mascherano, a minha curiosidade era mais mórbida. Com o coração e a fúria de sempre, mas já sem o mesmo pulmão, ou seja, ainda com menos cabeça, Mascherano era um acidente prometido. Há quatro anos, no Brasil, assumiu a responsabilidade e foi lidador, forcado, rabejador e touro, tudo ao mesmo tempo. Aos sete minutos, destacou-se logo com uma falta sobre Mbappé. Griezmann atirou à barra, mas a partir daí o foco da minha atenção deslocou-se para o jovem francês de dezanove anos. Não foi fácil. Ele é tão rápido que até pela televisão é difícil acompanhá-lo. Aquela arrancada desde antes do meio-campo, a forma como passou por Rojo – um TGV ao lado de uma locomotiva a vapor – fez lembrar aquele Ronaldo fenomenal que, num par de épocas nos anos 90, redefiniu o futebol moderno e o que se pode esperar de um avançado. Para sermos justos com o defesa argentino, temos de dizer que foi suficientemente rápido para cometer penálti. Um a zero para os franceses que entraram logo naquele modo de gestão deschampiano que tão bem tinham ensaiado contra a Dinamarca.

O tempo passava, Messi ia coçando as barbas pensativamente, Mascherano, sem barbas, via-se obrigado a fazer faltas e Di María, que após duas semanas de campeonato, ainda não tinha entrado em território russo, acordou 40 milhões de argentinos e retirou o jogo do caldo especulativo em que a França o queria adormecer. Na segunda parte, quando se esperava nova afirmação dos gauleses, Messi rematou à baliza, a bola bateu em Mercado e enganou Lloris. Depois do golo de Harry Kane, foi o melhor golo de ressalto até agora. Os franceses começaram a perceber que corriam sérios riscos de serem eliminados por uma das piores Argentinas da história e, dada a perigosidade da missão, destacaram um lateral-direito para resolver o problema. Pavard, que tinha levado uma infame cueca de Di María no lance do segundo golo argentino, marcou um golo ainda melhor que o de Nacho contra Portugal, assumindo desde logo a liderança na disputa pelo título de melhor golo de um lateral-direito.

Faltam-me adjetivos para descrever o que aconteceu a partir daí, mas sobra um nome: Kylian Mbappé-Lottin. Foi uma daquelas exibições em Mundiais que criam lendas instantâneas. Enquanto Mbappé varria o campo como um ciclone, Messi olhava para o chão. Houve um momento em que França parecia caminhar para uma goleada histórica, mas, de repente, o jogo arrefeceu, Messi emergiu do pasmo e ainda assistiu Aguero para fechar o resultado num 4-3 enganador porque não nos diz o mais importante. Repito: Kylian Mbappé-Lottin.

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Comecei o dia a ler este comovente artigo de Edinson Cavani no Players’ Tribune (quem me mandou?). É uma carta do Cavani adulto ao Cavani de nove anos que não tinha aquecimento em casa, que se tapava com quatro mantas para não passar frio, que jogava à bola nos baldios com aquela alegria que só se tem aos nove anos. O Cavani de trinta e um anos alcançou coisas com que o pequeno Cavani nem podia sonhar e, no entanto, inveja o que aquele miúdo tinha e que ele acabou por perder na vereda estreita do sucesso: a liberdade. “Não tens água quente no duche. Não tens um tostão no bolso. Nem sequer tens um cabelo de jeito. Mas tens outra coisa. Algo que não tem preço. Tens a tua liberdade.” É como se agora, diz ele, estivesse a viver um sonho, mas fosse prisioneiro desse sonho. E a única maneira de reconquistar a liberdade perdida é a de seguir o conselho que o pai lhe dava antes de ele entrar nos campos modestos de Salto: “No momento em que cruzas essa linha de cal e entras em campo, é só futebol. Nada do que acontece fora dessa linha te poderá ajudar lá dentro. Não existe mais nada.” Na longa carta à criança que foi, Cavani recorda também a grande invenção dos treinadores para manterem os miúdos envolvidos no jogo até ao último minuto. Aquele que marcasse o último golo ganhava um gelado. Assim, esse golo derradeiro passou a ser o Golo do Gelado. Para um miúdo pobre a jogar à bola nos confins do mundo, um gelado no fim de um jogo num dia quente não é um prémio qualquer.

Mas a um adulto que tem tudo o que é que se pode oferecer para que ele continue a lutar, para que ele continue a correr como se fosse uma criança a quem prometeram um gelado? Talvez um vislumbre de glória com a camisola do país seja prémio suficiente para aguentar as horas nos aviões, nos hotéis, nos autocarros, em treinos e palestras, em compromissos publicitários e sessões de recuperação. Talvez aquele escudo na camisola valha todos os sacrifícios. Ou talvez o que os faça continuar seja o desejo de recuperar a liberdade perdida. Dentro de cada neo-milionário destes, dentro da cabeça de cada estrela global, dentro do coração de cada jogador adulto, há ainda uma criança pobre que joga à bola não para enriquecer, mas para jogar à bola, para continuar a ser criança, para continuar a ser livre, para conquistar o direito a saborear um gelado no final do jogo, um gelado que tem o sabor da vitória, da infância, da liberdade.

Querido Cavani de nove anos, daqui a muitos anos, numa cidade que agora não és capaz de apontar no mapa, serás responsável pela tristeza de milhões de pessoas no meu país e serás responsável pela alegria incontrolável de milhões de compatriotas teus. No meu país falarão do árbitro, de como os teus companheiros queimaram tempo, das oportunidades que desperdiçámos, do mal que jogámos, das escolhas do treinador (confesso-te que já os insultei a todos enquanto via o jogo), mas eu não quero que isto seja sobre nós, quero que isto seja sobre ti, sobre o miúdo que és. Quero dizer-te para não te preocupares porque, por muitos anos que passem, não perderás a alegria, não esquecerás o conselho do teu pai e continuarás a jogar, mesmo famoso e milionário, como um miúdo que quer ganhar um gelado no fim de um jogo. No dia em que eliminares o meu país do campeonato do mundo, sentirei o sabor amargo da derrota, mas como serás tu a marcar os golos, guardarei o doce sabor da tua lição e da tua liberdade.

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