É sabido que os engenheiros têm as mentes mais brilhantes. Por isso, não foi surpresa a nomeação de um engenheiro para o mais alto cargo diplomático do planeta. Este engenheiro é também político por vocação – um zeloso tomador de decisões, profundamente consciente das responsabilidades que a função exige.

O engenheiro dedicou-se a evitar erros. No seu posto de responsabilidade máxima, não há espaço para arriscar. O protocolo deve ser respeitado acima de tudo. Ações concretas? Soluções eficazes? Só com sangue frio se entende que essas são tarefas para atores menos influentes, sem reputação a zelar.

O engenheiro teve o discernimento de não bater o pé ao anti-multilateralismo da administração Trump. Sabia que não pode correr o risco de antagonizar o maior contribuinte líquido para o orçamento da organização.

O engenheiro evitou contrariar demasiado as nações com poder de veto no Conselho de Segurança, ciente de que seriam estes países a adotar uma recomendação para a sua recondução para um segundo mandato. Afinal de contas, era a continuidade e estabilidade da instituição que estava em jogo.

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O engenheiro não se pôde comprometer demasiado com os conflitos na Síria e no Iémen, mantendo-se numa posição prudente. Preferiu delegar essa responsabilidade aos seus altos-comissários e emissários especiais, consciente de que ditadores implacáveis e desastres humanitários devem ser abordados com a máxima cautela. A omissão é por vezes a forma mais sábia de ação.

O engenheiro conseguiu manter o diálogo aberto com regimes infames, monopartidários ou teocráticos, como o chinês ou saudita. Ao fim e ao cabo, é fundamental ouvir todos os lados em momentos de crise. Escutar pode falar mais alto do que qualquer intervenção. Taiwaneses, uigures e as mulheres do Médio Oriente reconhecem que a paciência é uma virtude. Jamal Khashoggi não teve a mesma sorte. Mas o engenheiro não se podia dar ao luxo de comprometer a sua neutralidade estratégica.

O engenheiro teve o cuidado de não hostilizar um criminoso de guerra com mandado de detenção em Kazan. Afinal, só Deus sabe o que uma ação precipitada poderia provocar. Não podia correr o risco de tomar uma atitude que colocasse em perigo o povo ucraniano.

O engenheiro tanto zelou pela equidade no exercício das suas funções que procurou erguer-se acima de qualquer julgamento moral para justificar o injustificável. Assim, respeitando todas as partes, explicou que o 7 de Outubro não surgiu “num vácuo” e ignorou as ligações da UNRWA ao terrorismo ou o discurso antisemita da relatora especial Francesca Albanese. Quando se pensava que o engenheiro não conseguiria retirar mais coelhos da cartola para honrar o compromisso férreo com a imparcialidade, eis que condenou o pogrom de Amesterdão como um incidente de antisemitismo e, também, “de fanatismo anti-muçulmano”. Valha-nos esta habilidade retórica, ferramenta mágica para uma desescalada sem esbarrar nas fragilidades alheias.

O engenheiro acabou por se tornar o primeiro diplomata a receber o título de persona non grata em Israel. Porque a imparcialidade exige sacrifícios, até da razão. O engenheiro foi um mártir da diplomacia.

O engenheiro proferiu discursos brilhantes. O engenheiro protagonizou épicas sessões fotográficas. O engenheiro aceitou ser desprezado por metade do planeta e instrumentalizado pela outra metade, sempre em nome de um ideal maior. Mesmo diante das maiores tiranias, não se dignou a perder a compostura.

O engenheiro será para sempre lembrado como um símbolo de equilíbrio num mundo polarizado. O engenheiro será exaltado como um case study da mediação de conflitos nas academias de relações internacionais. O engenheiro irá inspirar jovens em palestras universitárias por este mundo fora. Exceto em Israel.

O engenheiro nunca se precipitou. Soube dominar habilmente a arte de silenciar-se perante injustiças. E nesse silêncio, criou um eco ensurdecedor até para os mais frágeis ouvidos. Pobre engenheiro. Até esse fardo teve de suportar.

O engenheiro foi o guardião da coexistência pacífica. A sua presença foi uma garantia de isenção sem precedentes. O engenheiro não tomou partido. O engenheiro conseguiu não ofender quase ninguém. E por isso, o engenheiro ainda há-de ser recompensado com um Nobel da Paz.