Se puder, qualquer pessoa de bom senso prefere não pagar pelo que consome, mas nunca existem almoços grátis. Isto vem a propósito de uma das 12 medidas centrais do programa político de Carlos Moedas na sua candidatura a Lisboa, de reduzir em 50% o preço do estacionamento para residentes que se desloquem de carro em Lisboa.

Se houver controle de preços do pão, deixa de haver pão, ou a sua qualidade piora muito. Se o preço dos combustíveis não equilibrar a procura e a oferta, o stock esgota e há bombas que ficam vazias. Até as vacinas têm que ser pagas a quem as fornece, ou não haveria vacinas inventadas e produzidas.

Felizmente nem tudo tem que ser pago. O ar que respiramos. Caminhar. Pensar. Dormir. Brincar. Falar. E se se tratar de estacionar o carro?

O que é que distingue coisas que têm que ter um preço das que não têm? Esta resposta costuma aparecer na primeira aula de qualquer disciplina de economia: a escassez. Quando um bem não é escasso (como o ar que respiramos), não é preciso haver nada a equilibrar o seu uso – toda a gente pode respirar sem limites e o ar não vai acabar por isso.

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Para estacionar um carro numa aldeia não é necessário haver um preço para gerir escassez do espaço disponível, porque há espaço de sobra para todos.

Já quando se trata de um bem escasso, a não existência de um preço ajustado às circunstâncias dá sempre, mas sempre, bronca, como sentiram os venezuelanos quando lhes faltou pão nas padarias, e como todos os dias sentem os lisboetas residentes quando tentam estacionar o carro ao fim do dia…

Nas cidades, a ausência de um preço causa mães e pais desesperados à procura de um lugar perto de casa depois de irem buscar a criança à creche no final do dia, ao mesmo tempo que outras famílias colecionam carros desnecessários e parados 24 horas por dia a ocupar espaço público. Causa também que trabalhadores que, por qualquer motivo, não tenham uma alternativa a chegar de automóvel, sejam obrigados a sujeitar-se à “economia do sono” (um termo aplicado pelo Prof. José Manuel Viegas nas aulas de Transportes que frequentei há 20 anos), que é como quem diz dormir menos para acordar mais cedo e chegar a tempo de apanhar um lugar. Causa também o congestionamento desnecessário provocado pelas voltinhas à procura de estacionamento, porque lugares à borla são rapidamente ocupados. E impede qualquer tipo de investimento e inovação para encontrar melhores soluções de estacionamento – qual é o investidor que quer criar alternativas inteligentes para residentes quando estes podem estacionar na rua por um valor meramente simbólico?

Há pelo menos 50 anos que o estacionamento é um dos problemas mais sentidos pelos lisboetas e desde sempre que a causa é a mesma: o estacionamento para residentes é à borla. E como não há almoços grátis, os lisboetas que precisam de encontrar um lugar de estacionamento sofrem.

Tinha alguma esperança que a candidatura de Carlos Moedas propusesse uma solução para nos retirar de uma vez por todas deste regime venezuelano no que diz respeito ao estacionamento de residentes em zonas densas da cidade, o qual nunca foi resolvido pelas administrações das últimas décadas, mas a candidatura alternativa ao atual executivo consegue propor agravar ainda mais o problema. Não só se vai continuar a ocupar o espaço público escasso disponível à borla nas zonas de residência, como fora desta ainda se pretende que a parte da população que vive dentro do perímetro da cidade pague metade do preço pago pelos que vêm de fora.

Vamos rever a matéria e prever por onde este almoço supostamente grátis vai correr mal:

  1. A baixa do preço vai fazer a procura do uso e estacionamento automóvel aumentar, agravando o problema da escassez do estacionamento, as voltinhas à procura de lugar, o congestionamento nas vias e o tempo perdido nisto tudo por residentes e não residentes, incluindo não só os automobilistas, como também os peões e utilizadores de autocarro e modos suaves que também são prejudicados pelo trânsito;
  2. Haverá menos incentivos ao investimento e inovação para criar alternativas de mobilidade, incluindo alternativas de estacionamento mais inteligentes;
  3. As pessoas economicamente mais favorecidas – que têm rendimentos e capital para viver dentro de Lisboa – e que têm carro na rua, vão ser mais subsidiadas (em espaço de estacionamento) face às pessoas economicamente menos favorecidas – que vivem fora de Lisboa – e que precisem de usar o mesmo espaço público;
  4. Num sistema de mobilidade que deve ser integrado à escala metropolitana, a candidatura de Moedas propõe a via populista de favorecer os votantes em Lisboa face aos não votantes, distorcendo uma política que deve ser metropolitana e discriminando quem está fora face a quem está dentro;
  5. Toda a gente compreende que é mais fácil evitar o uso do carro nos locais onde existem boas alternativas e as distâncias de viagem são curtas, e o interior do município de Lisboa é o local melhor servido de alternativas de transporte de todo o Portugal. Os residentes são por isso quem tem mais facilidade em encontrar alternativas e, ao discriminar positivamente o uso de automóvel, está a dar-se o sinal exatamente oposto ao que é necessário;
  6. Os preços das casas em Lisboa vão aumentar ainda mais. Passo a explicar. Viver fora de Lisboa vai tornar-se mais difícil para quem trabalha cá dentro (pelo aumento do congestionamento) e os residentes terão acesso a um subsídio ao estacionamento acrescido, o que irá aumentar a pressão sobre os preços do imobiliário dentro da cidade.

Se nas “cidades de 15 minutos”, um chavão estranhamente usado pela candidatura de Carlos Moedas, é condição necessária que sejam promovidas as alternativas ao automóvel e não o seu contrário, este propõe medidas que, quanto muito, contribuem para cidades de 115 minutos (perdidos no trânsito). Para esta medida em concreto, “Lisboa pode ser muito mais trânsito” aplicar-se-ia bem como slogan.

Não é possível querer algum dia viver numa cidade sem “problemas de estacionamento” quando por esse estacionamento os residentes pagam um valor meramente simbólico. Nenhum dos partidos com influência governativa propõe resolver o problema do estacionamento na sua origem, porque ainda não estão preparados para dizer que o estacionamento para residentes tem que ser pago. E assim continuaremos com as nossas dores de estacionamento.