Na semana das eleições, que coincidiu com o regresso às aulas, que como é bem sabido é a semana do ano em que os utilizadores de automóvel das grandes cidades mais sentem desespero no trânsito, estes rogavam pragas a quem estivesse a jeito, e em Lisboa quem estava a jeito era Fernando Medina, tão a jeito que alguns indecisos poderão ter canalizado o desgaste rodoviário dessa semana para o boletim dos votos, quiçá um dos motivos misteriosos pelos quais o resultado das eleições foi diferente do que diziam as sondagens.

A Av. Almirante Reis foi um campo de batalha onde se esgrimiu a liberdade das pessoas poderem usar a bicicleta na cidade com a liberdade das pessoas não serem empatadas quando usam o automóvel, entre outros flancos laterais da batalha como a capacidade das ambulâncias fluírem para os hospitais da zona, das emissões provocadas pelos automóveis congestionados e da segurança proporcionada pela ciclovia ali desenhada.

Quem tenha tido a oportunidade de contactar com a evolução das políticas de mobilidade urbana noutros países, sabe que esta guerra não é uma particularidade nacional ou lisboeta. Tem acontecido em todas as cidades em que foi sendo feita a transição de um modelo de mobilidade urbana onde o automóvel usa três quartos do espaço público para outro em que parte desse espaço é atribuído a outros usos e formas de mobilidade. O problema fundamental causador dessas guerras é a escassez do espaço urbano, que é limitado, e por isso quando se dá mais a uns é impossível não o retirar a outros, o que dá sempre origem a batalhas.

Ora, politicamente esta guerra não é fácil de travar. A tendência natural dos políticos é evitar zangar eleitores, o que à semelhança do que aconteceu em Lisboa até 2017, leva à inação. Se forem um pouco mais ousados na mudança, os políticos arriscam-se a perder as eleições seguintes, como acabou por acontecer a Fernando Medina.

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Ao contrário do que se diz no senso comum, a saída para este imbróglio não passa apenas pela melhoria dos transportes públicos, que em termos globais é razoável para uma cidade do tamanho de Lisboa, nem da falta de parques de estacionamento dissuasores à porta da cidade, que até já existem mas estão semi-vazios apesar de custarem apenas cinquenta cêntimos por dia. Estas soluções são insuficientes devido a um fenómeno simples de perceber, que acontece aqui e em qualquer lugar do mundo desenvolvido: enquanto for fácil e conveniente usar o automóvel, a generalidade das pessoas irá naturalmente continuar a fazê-lo. Por isso, por mais que se procure, não é possível encontrar cidades estrangeiras que tenham diminuído o uso automóvel apenas à custa da melhoria das suas alternativas. Em Amsterdão e Zurique, para dar dois exemplos com áreas metropolitanas de tamanho semelhante a Lisboa, os residentes pagam perto de 300 euros por ano para poderem estacionar só o primeiro carro da família na sua rua, uma medida que seria desnecessária se a excelente qualidade dos transportes públicos nestas cidades fosse de facto suficiente para limitar o uso automóvel. Retirar carros da cidade implica por isso necessariamente implementar medidas impopulares, com custos políticos, retirando espaço ao automóvel e/ou aumentando os custos do seu uso dentro da cidade.

Na sequência desta difícil equação política, há alguns anos atrás um conhecido consultor de mobilidade urbana alemão que ouvi numa conferência dizia qualquer coisa como isto: “Das muitas cidades que pude acompanhar ao longo das últimas décadas, aquelas que conseguiram operar uma transformação duradoura por uma mobilidade mais sustentável foram aquelas em que foi possível gerar um consenso político e civil sobre a visão da mobilidade para a cidade. Algumas cidades conseguiram avanços muito rápidos em determinados períodos, mas sem esta visão consensualizada tiveram depois recuos e não conseguiram progredir consistentemente ao longo dos anos.”

Pressionado por esta falta de consenso e insatisfação de parte da população, Carlos Moedas comprometeu-se a reverter algumas medidas em princípio desejáveis para o progresso de uma cidade com uma utilização mais eficiente do espaço público, anulando a ciclovia pop-up da Almirante Reis e reduzindo em 50% as tarifas de estacionamento em parquímetros para residentes. O lado positivo é que Carlos Moedas teve como principal mensagem de campanha fazer a mudança “com as pessoas”, não negando que a mudança é necessária. Por mais que na cabeça de técnicos da CML, consultores e ativistas da mobilidade sustentável como eu já esteja mais do que clara a necessidade de operar essa mudança, o comum dos mortais que não pensa todos os dias em mobilidade está longe de compreender tanto os objetivos como os métodos necessários para lá chegar, quanto mais sentir que teve tempo e oportunidade para se ajustar a essa mudança. Para esse desconhecimento tem contribuído alguma incompetência da CML em comunicar e envolver as pessoas, como se viu por exemplo no belíssimo projeto para a envolvente do Mercado de Arroios, em que moradores e comerciantes não foram tidos nem achados, ou na apresentação da ZER para a baixa, cujo plano de desenvolvimento previa não mais do que um mês para receber e maturar contributos da população, uma consulta pública para inglês ver.

As cidades que operam mudanças sustentadas na mobilidade são aquelas que conseguem gerar consensos que perdurem além da espuma do ciclo eleitoral de 4 anos, e por isso Lisboa só pode avançar consistentemente quando tiver um plano de mobilidade participado.

Não basta um plano escrito no papel por técnicos. Ele tem mesmo de ser participado. Num processo participado é necessário em primeiro lugar chegar a um acordo geral sobre a visão e os objetivos. Esta parte deverá ser fácil: tirando uma percentagem pequena da população, toda a gente hoje concorda que Lisboa tem carros a mais, e que é necessário retirar trânsito e melhorar as condições para alternativas de mobilidade.

Depois de definidos a visão e objetivos, o desenvolvimento participativo do plano deve abrir uma discussão alargada acerca das melhores medidas para os atingir, o alvo da discórdia atual. Este processo tem que ser iterativo e dar oportunidade para ponderar propostas alternativas e respostas técnicas que expliquem os seus impactos e eficácia. Por exemplo, uma proposta de desenvolvimento de parques dissuasores será importante, mas a análise técnica baseada em estudos empíricos e modelação terá que explicar que a medida é insuficiente pelos motivos que descrevi acima. Este envolvimento iterativo, com a participação dos cidadãos e organizações relevantes, terá o efeito de aumentar a literacia dos participantes sobre o tema, contribuindo para a compreensão das causas da necessidade de implementar medidas difíceis e da ineficácia de algumas mais fáceis. Mas não se pense que só estes é que aprendem no processo. Qualquer gestor de produto sabe hoje que a sua melhor aprendizagem está em ouvir os utilizadores, e nas políticas de mobilidade não é diferente. Sempre que se ouve os cidadãos afetados, aprende-se e ganham-se novas perspectivas que valorizam as soluções desenvolvidas. Além destes dois benefícios essenciais da participação pública, existe um terceiro que é o facto da população se sentir genuinamente ouvida. Com um processo transparente e comunicação eficaz ao longo do desenvolvimento participativo do plano, as pessoas compreenderão que a sua opinião foi tida em conta, mesmo que por motivos justificados não tenha sido acolhida. Isto faz toda a diferença na aceitabilidade pública das medidas implementadas.

Existem ainda outras duas vantagens relacionadas com a elaboração de um plano, sendo a primeira óbvia. Um plano serve para priorizar, calendarizar e coordenar medidas, fazendo com que a sua ação global integrada seja o mais eficiente possível. Na envolvente do Mercado de Arroios, a CML criou estacionamento adicional numa rua próxima deste para compensar a redução de estacionamento junto ao mercado, mas as duas medidas aconteceram com tal desfasamento no tempo e tal ausência de comunicação com a população local que o efeito conjunto que pretendiam ter nunca chegou a ser entendido pelos comerciantes e residentes.

A segunda vantagem fundamental de um plano de mobilidade é que quaisquer medidas restritivas para o uso do automóvel, sejam físicas ou de preço do estacionamento, podem assim ser planeadas com antecedência e conhecimento dos cidadãos, permitindo-lhes ter previsibilidade sobre o que vai acontecer e tempo suficiente para se preparar para a mudança. Quando um dia os residentes eventualmente vierem a ter que pagar pelo seu lugar de estacionamento na rua, como em Amsterdão e Zurique, é bom que sejam avisados disso com pelo menos dois anos de antecedência, dando-lhes um tempo para se ajustarem.

Esta previsibilidade e capacidade para implementar medidas impopulares pode ser conseguida com um plano de mobilidade sustentável participado, que se afirme como uma referência respeitada para a execução das mudanças que são necessárias mas politicamente difíceis, e que têm que perdurar além da espuma do ciclo eleitoral.

O momento presente é uma oportunidade única. O facto do executivo dos Novos Tempos estar em minoria na Câmara, bem como a sua mensagem principal de envolvimento das pessoas, não parece deixar alternativa a que se procurem criar pactos mais vastos, e na mobilidade urbana isso é uma oportunidade única para construir um plano de mobilidade sustentável feito com as pessoas que viabilize uma mudança positiva sustentada em Lisboa. Um plano de mobilidade que não pode ser da Novos Tempos, mas de todos os partidos que quiserem ser parte do processo e da sociedade civil. Esta é uma responsabilidade de todos.