Não discuto a eutanásia através de exemplos por três motivos. O primeiro é não ter nenhum exemplo. Os meus familiares próximos aparentam vender saúde cinco minutos antes de caírem redondos. Compreensivelmente, cinco minutos de aflição são insuficientes para se despachar a burocracia inerente a um processo de morte assistida. As mortes foram assistidas simplesmente na medida em que havia gente a ver. Além disso, de acordo com as testemunhas, nenhum dos meus familiares manifestou vontade de que o ajudassem a morrer: pelo contrário, tanto o meu pai como os meus avós mostraram uma vontade danada de que os ajudassem a permanecer vivos, desejo que infelizmente ninguém foi capaz de concretizar.

O segundo motivo pelo qual não discuto a eutanásia através de exemplos é por não apreciar discutir generalidades mediante casos específicos, ou casos específicos mediante generalidades. O terceiro motivo pelo qual não discuto a eutanásia através de exemplos é por não me sentir habilitado para discutir a eutanásia, ponto.

Ao que parece, uma vastíssima parte dos deputados, criaturas cuja competência máxima raramente excede o sorrir atrás dos chefes, sente-se habilitadíssima para o fazer. Na quinta-feira, o parlamento votou a despenalização, ou de facto a legalização da eutanásia. Dado que a discrepância entre o tema do debate e os debatedores é equivalente a encher as Conferências de Solvay com fiscais da ASAE ou concorrentes da “Quinta das Celebridades”, isto tem certa graça. E a graça aumenta ao perceber-se que o alegado argumento para a despenalização da eutanásia é o direito do indivíduo a escolher o modo e o momento de morrer. Pelos vistos, socialistas, leninistas e “ambientalistas” diversos pretendem fazer-nos acreditar que se preocupam com a liberdade dos indivíduos, justamente aquilo que dedicaram as carreiras a combater. É isso, não é? É sim, senhor. E para a semana o Hamas emitirá um comunicado em prol da emancipação da mulher e organizará cinco paradas gay.

Claro que nada, incluindo questões morais, religiosas ou logísticas, me move contra a eutanásia – excepto, até ver, a minha –, ou contra a possibilidade de cada um decidir a altura de ir à vida (expressão idiomática que, misteriosamente, significa o oposto). O que me deixa com um ou dois pés atrás é a intrusão do Estado no assunto. Por um lado, estamos a falar do Estado que não consegue com que um comboio chegue a horas ao Cacém, ou com que um quartel proteja meia dúzia de granadas: se o Estado é incompetente por definição, o Estado dominado pela esquerda é desastroso por vocação. De resto, a incompetência é tal que a eutanásia sem consequências penais já é praticada com frequência nos hospitais públicos – por acaso, costuma acontecer nas salas de espera das urgências e raramente é voluntária. Dizer que o Estado não é pessoa de Bem é o eufemismo dos séculos, o passado e o actual: nos cargos de poder, o Estado reúne uma considerável quantidade de pessoas estritamente empenhadas no Mal.

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Por outro lado, ou se calhar pelo mesmo, é difícil conciliar o altruísmo do Estado em permitir que um cidadão morra em paz com o zelo do Estado para impedir que o cidadão não viva em paz. Há um cinismo muito especial quando a magnânima entidade que nos “concede” o último instante é aquela que tentou de tudo para condicionar e destruir os milhões de instantes anteriores. Se o Estado tivesse a mínima decência e algum vestígio de respeito pela minha autonomia, poderia começar por me isentar das incontáveis obrigações apenas destinadas a alimentá-lo e a amesquinhar-me. Fazemos assim: eu não vos maço com os pormenores do meu derradeiro suspiro e vocês não me maçam com impostos entretanto, pode ser? Não pode? Não? Ai, que chatice tão grande. Mas uma surpresa pequena: eu desconfiava que a generosidade estatal tinha limites estreitos. E hoje também desconfio que não existe de todo.

É ilusória a incoerência de quem nunca nos dá liberdade para viver e aparece no final a oferecer-nos liberdade para morrer. Porque não há incoerência. Porque não há liberdade. Porque a eutanásia, proposta e discutida desta maneira, é o meio que o Estado, que manda na nossa vida, encontrou para se apropriar da nossa morte. Não receio que o Estado desate a exterminar velhotes: receio que o Estado se julgue convidado para um evento em que, dizia um francês antigo, estamos enfim fundamentalmente sozinhos. Dado que, desde a fecundação, o Estado mete o bedelho em cada instância do que devia ser privado, a nacionalização dos óbitos era o que faltava para completar o ciclo opressor.

Claro que o incómodo com a opressão depende da perspectiva. Ao invés do defensores do referendo, suponho que, se questionada, a maioria fosse favorável à ingerência do Estado na morte. Afinal, essa exacta maioria simpatiza com a ingerência do Estado pela vida fora. Os portugueses gostam que tratem deles, ainda que lhes tratem da saúde.