Há enigmas insondáveis instalados no espaço público sem que se alcance o seu verdadeiro fundamento e a razão de ser.
Ao rever a “fita do tempo”, comecemos por Belém. Depois de Cavaco Silva, um Presidente institucional, de perfil austero e palavra contida e cirúrgica, Marcelo Rebelo de Sousa transformou a Presidência numa espécie de “feira franca” mediática, onde o “comentador” se entretém a desbaratar palavras e prestígio, ao serviço da sua incomensurável necessidade de ter palco.
Por este andar, quando terminar o mandato – e haja quem o ajude até lá a sair com dignidade -, ainda arrisca ser novamente contratado por um qualquer canal de tv, para cumprir o seu destino de “comentador-mor do reino”, emparceirando, designadamente, com um “oriental lento“, como António Costa, ou com os “noviços” Rui Rio, em modo de resgate da sua desastrosa prestação na liderança do PSD; e Américo Aguiar, um homem da igreja vocacionado para pastorear o “rebanho” através do “altar” audiovisual, primeiro, discreto, na Rádio Renascença, e, agora, seduzido pela televisão.
E enquanto Cavaco reapareceu, por excepção, na campanha eleitoral ao lado de Luís Montenegro, quebrando um prolongado “jejum” de actos públicos, Marcelo libertou-se de um curto “período de nojo”, durante a recente campanha eleitoral, para se desdobrar em múltiplas intervenções, qual delas a mais infeliz.
Depois de atribuir honrarias a esmo, em nome da liberdade, a vários actores que afincadamente a combateram, Marcelo quis ir mais longe e, para pasmo dos jornalistas estrangeiros à mesa, resolveu menosprezar o primeiro ministro, a quem deu posse recente, tratando-o como um “rural lento” – ou seja, em português chão, como um “parolo” -, exterior, portanto, à elite urbana e cosmopolita onde se movimenta.
O “circo mediático“ parece definitivamente consagrado em Portugal . E nem mesmo Montenegro resistiu à tentação de convidar um prometedor “artista”, já afeiçoado às camaras, para encabeçar a lista de candidatos a eurodeputados, encargo que Sebastião Bugalho se apressou a refutar que fosse “um tacho”, declarando, com tocante humildade, que “os portugueses conhecem-me”.
“Uma televisão que tem 50% de share vende tudo – tanto um Presidente da República como um sabonete” – quem o disse, no ano já longínquo de 1997, foi Emídio Rangel, fundador da TSF e dinamizador da SIC.
À época, a frase chocou os espíritos mais sensíveis, mas o conceito seria recuperado por Marcelo quando se candidatou a Belém, quase sem campanha, num registo tranquilo em versão, não se dirá de sabonete, mas de “português suave” …
Ora se a televisão é capaz de “vender” um Presidente, mais depressa “vende” um eurodeputado, sobretudo se o candidato revelar talento comunicacional, atrevimento q.b. e inabalável ambição, recompensando a ousadia de Montenegro, que prometeu estar ao lado do novo pupilo em campanha, o qual já se compara – em defesa dos atributos da sua idade -, com a juventude do Presidente Macron…
Veterano nas lides políticas e pioneiro no comentário político, Marcelo fez escola, como se nota, e não lhe faltam seguidores aplicados.
Um estudo recente da MediaLab do ISCTE, citado pelo Expresso , revelou, aliás, sem grande surpresa, que os comentadores políticos nas televisões aumentaram 47% no decurso da ultima década, passando de 53 para 78. É barato e, aparentemente, os despiques e os monólogos garantem audiências.
Com o advento anunciado do novo canal televisivo de informação e as contratações já confirmadas, este número ficará ainda mais inflacionado, já que a receita, como nas telenovelas, está para durar. É um fenómeno muito português, que merece estudo e reflexão.
O certo é que ficou demonstrado que Marcelo chegou a Belém sem renunciar ao comentador, aptidão que lhe garantiu a notoriedade publica que não teve como político, jurisconsulto e académico, apesar da cátedra e da boa reputação granjeada, quer junto de alunos, quer de colegas docentes.
Com os seus “desabafos”, confiados aos correspondentes estrangeiros – visando tanto o actual como o anterior primeiro ministro -, Marcelo conseguiu algo que seria impensável, ou seja, que os extremos, à esquerda e à direita, lamentassem a sua narrativa, julgando-a imprópria num Chefe de Estado.
Ninguém percebeu o que se passou, nessa noite, na cabeça de Marcelo, para se entregar, de improviso, a um chorrilho de catilinárias, repartidas entre Luís Montenegro e António Costa, achincalhando ambos, e envolvendo, também, a controversa PGR, Lucília Gago, cujo mandato está a meses de terminar, nomeada com a sua chancela.
E ainda teve fôlego para trazer à mesa os “custos” e a reparação do passado colonial português, matéria suficientemente melindrosa para não ser tratada como se fosse uma “conversa em família” em casa da avó.
Ao reconhecer as responsabilidades de Portugal nessa matéria, e ao garantir que “temos de pagar os custos”, sem cuidar da menor articulação prévia com o governo, Marcelo abriu uma “caixa de Pandora” (à qual já fizera uma aproximação, há ano, na sessão de boas-vindas a Lula da Silva),de desfecho imprevisível, insistindo que o País tem a “obrigação“de“liderar”o processo de reparação às ex-colónias, e que “não podemos meter isto para baixo do tapete”. Uma perigosa utopia.
Aliás, sem perda de tempo, o Brasil , através da ministra da Igualdade Racial, pediu já “acções concretas” por parte de Portugal na sequência da “importante e contundente” declaração do Presidente da República…
Valha-nos ao menos, no meio deste sarilho escusado, a pronta resposta do governo que, sem deixar arrefecer as promessas e as convicções presidenciais, comunicou, “preto no branco”, que“não está em causa nenhum processo de reparação”.
A propósito, escreveu António Barreto, certeiro, que “quem quer julgar, hoje, os reis e os escravos de há séculos, quer hoje qualquer coisa. E não se trata apenas de bons sentimentos: quer poder, bens e poleiro”.
Fica para a História das celebrações de meio século do 25 de Abril e da democracia portuguesa, o comportamento errático e, no mínimo, precipitado de Marcelo, que acendeu uma polémica descabida, quando sobram os problemas e as incertezas sobre o porvir dos portugueses, confrontados com elevadas taxas de pobreza, uma administração publica inchada a “arrastar os pés”, uma economia anémica e muito dependente do turismo, uma carga fiscal absurda e um PIB que não acompanha o crescimento dos seus pares europeus.
Se o Presidente fala demais, e faz temer pela sua incontinência verbal, já o primeiro ministro evitou elucidar-nos e foi parco em explicações sobre o critério das suas escolhas, enquanto líder do PSD, em relação às Europeias de Junho.
De facto, Montenegro concorreu com o Presidente na disputa dos favores mediáticos, ao anunciar o cabeça de lista da AD para as europeias, surpreendendo tudo tudo e todos, da esquerda à direita.
Rui Moreira, há muito citado como reunindo a preferência dos responsáveis da coligação, esperou, em vão, pelo convite que, afinal, Montenegro entregara noutro endereço.
Valha a verdade que, com a excepção do liberal Cotrim de Figueiredo, os concorrentes de Bugalho são fracos, a começar por Marta Temido, a socialista que gosta de cantar a Internacional quando está irritada – como a própria confessou numa entrevista de vida -, e que deixou o SNS quase de pantanas, por causa, em boa parte, dos seus preconceitos ideológicos.
Mesmo assim, as primeiras sondagens dão vantagem folgada ao PS sobre o coligação, o que, a confirmar-se nas urnas, deixará Montenegro em “maus lençóis”.
Neste ambiente de perplexidades e de surpresas, a Justiça também não ajuda e tornou-se um novelo incerto e complicado. Com os advogados e arguidos da Operação Influencer a reclamar a “nulidade insanável da prova” – o que pode invalidar a investigação a António Costa, colocando mais uma vez o Ministério Público no pelourinho -, as demoras e a barafunda dos processos mais mediáticos parecem longe de afrouxar.
As operações espectaculares mais recentes, convenientemente seguidas de perto pelas televisões, avisadas de véspera, parecem ter servido apenas para “mostrar serviço” e assustar políticos.
De facto, não obstante o tempo decorrido desde a devassa à casa de Rui Rio, no Porto, à sede do PSD, em Lisboa, ou, ainda, após o “desembarque” aparatoso na Madeira, os resultados práticos estão por apurar.
Em contrapartida, os processos que incidem sobre José Sócrates empilham-se nos corredores ou adormecem nas gavetas, travados por recursos e expedientes dilatórios, com as defesas apostadas na prescrição.
Se acontecer e “ganhar na secretaria”, será uma derrota para o ex-primeiro ministro, mesmo que reclame vitória, como se tem visto em recentes entrevistas, como na CNN, onde Sócrates manifestou “o maior orgulho em enfrentar esta batalha sozinho, eu contra o resto do mundo”, rematando, com caridosa singeleza “basta-me um papel e uma esferográfica”.
Decerto por lapso de memória, esqueceu-se de mencionar os advogados que têm trabalhado na sua defesa e mais de três dezenas de recursos junto de tribunais superiores, a empatar os processos, além dos honorários e das custas somadas desse afã judicial. Uma ninharia…
Mas se este como outros processos, com ampla cobertura dos media, acabarem arquivados, será, sim, uma derrota memorável para a Justiça. Aguardemos.
Seja como for, o “estado de graça” acabou há muito, com contornos diferentes, para a PGR Lucília Gago e para o juiz Ivo Rosa. O mesmo “estado de graça” que não tocou sequer, ao de leve, Luís Montenegro, atacado à direita e à esquerda, mal empossado, sem a menor piedade. E ameaça não ungir António Costa nos seus objectivos internacionais, apesar de Marcelo admitir “a sensação de que começa a ser mais provável haver um português no Conselho Europeu, no próximo outono, em Bruxelas”.
Infelizmente, contam pouco nos areópagos europeus estes presságios de Marcelo. O seu “estado de graça” esfumou-se, delapidado em “selfies”, populismos e peripécias avulsas, com larga culpa própria. Uma desgraça nunca vem só…