Ruben Amorim não é só um grande treinador de futebol. Não é apenas um homem bem sucedido, nem apenas um campeão. Também é mais do que uma figura central, com Frederico Varandas e Hugo Viana, na libertação de um clube como o Sporting, até há bem pouco tempo aprisionado num fado interminável de desaires e convulsões, que atingiu o pico do absurdo com o reinado lamentável de Bruno de Carvalho e, em particular, com a invasão da Academia de Alcochete, a qual, até parece mentira, aconteceu há apenas seis anos.

Amorim é tudo isso – um excelente profissional, um líder fora de série, um reformador – mas a sua influência benigna, queiramos nós vê-la, transcende largamente os domínios do Sporting e do desporto.

É verdade que nos habituámos a ver o futebol como um viveiro de alarvidades de retórica e comportamento, e que essa imagem meio deprimente, meio caricatural, salientou a simpatia e razoabilidade de Amorim. Só por isso já merecia uma medalha por serviços prestados à Pátria. Num país tão obcecado por futebol como o nosso, em que treinadores e dirigentes têm sido pródigos em dar pontapés na língua e propagar cenas de falta de civismo a consecutivas gerações de adeptos, alguém que contraria essa tradição de forma tão lapidar devia ser formalmente reconhecido e agraciado.

Mas a importância de Ruben Amorim ultrapassa, de facto, o meio em que se move, porque o discurso selvagem associado ao futebol português há muito galgou a cerca para contaminar quase tudo. Amorim é um cavalheiro entre os seus pares, sem dúvida, mas é também um dos poucos homens que sabe comportar-se à mesa na taberna mal frequentada em que o espaço mediático tantas vezes se transforma.

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O mundo anda exaltado, reativo, belicoso. A pancadaria verbal instalou-se por todo o lado, e Portugal não foge à tendência. Como no recreio de uma escola primária, vale tudo para fazer passar a mensagem e sair “por cima” na discussão. A enfermidade manifesta-se em toda a praça pública – na política, desde logo, mas também em quem a comenta e faz do debate um assunto de vida ou morte, ou simplesmente cauciona com pontuações generosas os golpes mais rasos dos políticos nos debates, porque, afinal de contas, a única coisa que realmente interessa é humilhar o adversário, esmagá-lo como num combate de MMA.

Gente de dentes arreganhados, dedo acusador em riste, a transbordar certezas, que não hesita em fazer disparar os decibéis e – expressão muito estimada nos dias que correm – com killer instinct. Aumenta a perceção de que este paradigma vinga, produz resultados, é a receita do triunfo na política como no mundo do trabalho, o caminho da ascensão. E assim se vai replicando na televisão e no vizinho do lado, numa mistura de arrogância e de uso leviano da palavra, seja no desprezo pela mais elementar honestidade intelectual, seja no vazio das piruetas ditadas pelo marketing, que se adequam a qualquer circunstância ou destinatário e fazem tábua rasa de quem pensa pela própria cabeça. Mesmo André Ventura, que tanta agitação causou quando se tornou uma presença assídua na arena política, depois de uma recruta intensiva nos estúdios da CMTV a discutir futebol, se arrisca, um dia destes, a parecer tão manso como a sua defunta coelha ao pé de figuras que começam a despontar – ou mesmo de outras que já por aí andavam, mas que se vão reciclando, presume-se, à luz dos ensinamentos do líder do Chega e da sua receita de sucesso para conquistar um milhão de votos.

E eis que, no meio dos campos fumegantes da carnificina, temos a figura de Ruben Amorim. Uma injeção de sanidade mental numa sociedade que parece estúpida e vagamente suicida na sua atração doentia pelo conflito e pela mesquinhez. Alguém que sabe dizer com licença, por favor, obrigado; que é inteligente, empático e disponível; que mede as palavras mas cultiva a espontaneidade; que evita os ataques mas não deixa de ser firme; que realça publicamente o valor do outro mas é consciente do que vale; que tem sentido de humor e sabe rir de si próprio (como na noite dos festejos no Marquês de Pombal); que admite os seus erros pubicamente na certeza de que isso só o engrandece; que usa uma posição tão visível como a de treinador de um clube de grande dimensão para fazer alguma pedagogia, não se esquecendo de que há milhões de pessoas – entre adolescentes e crianças – a beber as suas palavras, a estudar os seus gestos, a avaliar as suas expressões; um homem que dispensa a vaidade e a insolência e percebe que o bom-senso é uma qualidade, de tão ameaçada e em desuso, verdadeiramente preciosa.

Duas vezes campeão, o treinador é o mesmo desde que chegou a Alvalade. O mesmo de quando conquistou inesperadamente o campeonato para o clube após dezanove anos em branco, o mesmo que ficou em quarto lugar quando tanto se esperava dele e o mesmo que repete a façanha alcançada em 2000/21 numa posição mais forte do que nessa altura. Nos bons e nos maus momentos, o exemplo de Ruben Amorim sempre esteve à vista de todos. Mas agora Amorim dá uma lição que importa reter e difundir num País tão deficitário de bons modelos: a de que é possível vencer, e vencer de forma inquestionável, mantendo a decência e a integridade intactas. Que os nosso filhos ponham os olhos no seu exemplo. Não temos muitos como o dele.