Se o leitor gosta de uma boa história de intriga e mistério, então não perca esta. Eu sei que as matérias fiscais são particularmente difíceis e enfadonhas, mas esta, além de simples, é muito interessante.

O Código do Imposto Municipal Sobre Imóveis (IMI) diz que pagam este imposto todos prédios, incluindo os edifícios e construções que estando instalados em terrenos do domínio público, façam “parte do património de uma pessoa singular ou coletiva”. Terrenos do domínio público são, por exemplo, as praias e os leitos dos rios.

Em muitos casos, é permitida a construção de imóveis nesses terrenos por particulares, mediante concessão do Estado. É o caso, por exemplo, dos bares e restaurantes de apoio às praias, ou então de quiosques e lojas. Os titulares desses imóveis sabem que sobre eles têm que pagar IMI anualmente e IMT sempre que os adquirem, e que sobre isso ninguém tem dúvidas.

O Código do IMI vai ao pormenor de dizer que esses imóveis são sujeitos a imposto, “embora situados numa fração de território que constitua parte integrante de um património diverso ou não tenha natureza patrimonial”, como é o caso dos terrenos do domínio público.

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Recentemente, em novembro de 2021, a diretora geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) emitiu uma informação vinculativa onde determina que pagam IMI os edifícios construídos pelos concessionários em terrenos do domínio público situados no leito dos rios.

Tudo assim, simples, sem nenhuma dúvida nem polémica, ao longo dos tempos. Até que surgiu o caso das barragens da EDP.

As barragens do Douro Internacional são construções e edifícios implantados em terrenos do domínio público, constavam do património da EDP e agora do da Movhera.

Embora o meu leitor possa não ser especialista em impostos, pode concluir facilmente que deveriam pagar IMI. Está absolutamente correto, mas apesar desta simplicidade, a AT ainda não obrigou nenhuma dessas empresas a pagar um cêntimo que seja. Estranho, mas real. É este o mistério desta história.

A atual EDP foi autorizada pelo Estado Português, em 1954, mediante concessão, a construir aquelas barragens e a explorá-las. As barragens são compostas por várias construções e edifícios, que são prédios para os efeitos do IMI. A concessão foi feita por 75 anos e prevê que, no final, passam para a posse do Estado todos edifícios e construções (artigo 4.º e 23.º – “no final da concessão, o Estado entrará na posse de todos os imobiliários (…) A concessão será entregue ao Estado gratuitamente, livre de quaisquer encargos, devendo as obras e instalações estar em perfeito estado de conservação”).

Em 2008 foi revisto o contrato de concessão, pelo conhecido ministro Manuel Pinho, mantendo-se a cláusula 7.ª que estabelece que “a barragem, bem como as outras infraestruturas integrantes do centro electroprodutor que se encontrem implantadas sobre o domínio público do Estado e que hajam sido construídas pela Concessionária revertem para o Estado no termo da presente concessão”.

Mais adiante, especifica o n.º 5 da mesma cláusula, que esses imóveis são privados porque, “durante o prazo do contrato de concessão, a concessionária detém a titularidade dos bens afetos ao estabelecimento da concessão”.

Em conformidade, a cláusula 36.ª determina que no final da concessão, “revertem para o Estado todos os bens que integram o estabelecimento da concessão … independentemente da natureza da titularidade bens”. Tudo muito claro, portanto. Os edifícios e construções das barragens estão no património da EDP.

É a própria EDP que o afirma, em carta dirigida á Agência Portuguesa do Ambiente (APA), em 9 de junho de 2020, e dada a conhecer ao Parlamento, já no contexto do negócio da venda das barragens, informando que “com a cisão ocorrida na EDP E.P., em 1994 foi definido, … que os edifícios, instalações e equipamentos afetos aos centros produtores ficariam na posse da CPPE (… que mais tarde viria a ser a EDP Produção)”. Simples, portanto. Fazendo “parte do património de uma pessoa singular ou coletiva”, os prédios pagam IMI, como estabelece, linearmente, a lei.

O contrato de concessão foi revisto no ano 2020, por ocasião do negócio das barragens, nele se mantendo as cláusulas que estabelecem a natureza privada daqueles prédios. Essa revisão foi assinada, em nome do Estado Português, pelos Presidente e Vice-Presidente da APA, os mesmos a quem havia sido dirigida aquela carta.

É hoje conhecido publicamente que esses edifícios e construções sempre estiveram no balanço e, por isso, no património da EDP, e foram transmitidos para a Camirengia e depois para a Movhera I no negócio realizado. O negócio e a transferência da titularidade daqueles prédios foram previamente escrutinados e autorizados pelo Estado, através daqueles dois dirigentes.

Tudo simples, portanto, os imóveis das barragens estão, e sempre estiveram, sujeitos ao IMI. Porém, até hoje, nem um cêntimo pagaram. E aqui emerge a pergunta: Porquê?

Segundo invoca a AT, será porque a APA entende que eles são bens que integram o domínio público e a AT parece que, neste caso e apenas neste, se submete a esse entendimento da APA.

A AT e a APA estão encostadas a um estranho equívoco. É que se esses imóveis são do domínio público não podiam ser transacionados, porque a lei assim o impede. E mais, a venda desses bens pode constituir crime de burla. Seria o que me aconteceria a mim se vendesse a um dos meus leitores a Torre dos Clérigos ou a Torre de Belém. Assim, persistindo essa teoria, o negócio das barragens é nulo.

Mas há aqui três mistérios. Pelos vistos, para a APA, estes prédios são privados ou do domínio público, dependendo dos dias. Quando autoriza a sua transação à EDP são privados, quando assina as adendas aos contratos de concessão, são privados, quando recebe cartas da EDP pedindo autorização para o negócio, são privados. Pelo contrário, quando se trata de pagar o IMI, e apenas especificamente para esse fim, já são do domínio público, mesmo que a própria EDP diga que são privados.

Qual será o critério, caro leitor? O mistério adensa-se, porque os dirigentes da APA que subscrevem este entendimento alterno são sempre os mesmos. Porquê?!

O outro mistério é que tanto a AT como a APA invocam uma lei de 1980 (Decreto-Lei 477/80), que manda elaborar o cadastro dos bens do Estado. Essa lei estabelece que quando o Estado seja titular de barragens, elas integram o seu património público ou privativo conforme tenham sido, ou não, declaradas de interesse público.

Repare, caro leitor, essa lei aplica-se aos bens do Estado e, portanto, não se aplica aos bens de privados. Estando no balanço destas empresas não podem estes prédios das barragens estar no inventário dos bens do Estado, nem podem ser bens do domínio público. Na verdade, não existem bens do domínio público que sejam de titularidade privada, e a inversa também é verdadeira. Os prédios não têm a versatilidade alternante da APA. Por essa razão, aquele diploma legal não se aplica a estas barragens, enquanto estiverem no património das empresas privadas a que nos temos vindo a referir.

Por que motivo a AT e a APA invocam esta lei? Com o é evidente, estas barragens não podem constar desse cadastro, pelo menos até ao final da concessão.

O terceiro mistério é o da AT. A AT, que raramente tem dúvidas quando se trata de contribuintes normais, tem todos os elementos que a obrigam a liquidar estes impostos. De entre esses elementos fazem parte entendimentos sancionados pela sua própria diretora geral, que estão em vigor para todos os restantes contribuintes.

Por que motivo a AT não líquida o IMI das barragens? Por que motivo só tem dúvidas quando se trata das barragens da EDP e não as tem relativamente a nenhum outro contribuinte nas mesmas circunstâncias? Ainda que tivesse dúvidas sobre aquele diploma legal, apesar da sua clareza linear, deveria colocá-las à entidade competente para organizar o cadastro dos bens imóveis do Estado, que é a Direção Geral do Tesouro e Finanças, por sinal do mesmo Ministério das Finanças. Por que motivo foi a AT perguntar à APA, que nessa matéria não tem qualquer competência? E por que motivo a APA invoca uma lei e um cadastro que não lhe compete aplicar?

Uma pista para este enigma pode ter sido dada pela Secretária de Estado do Orçamento no dia 29 de junho, quando declarou no Parlamento que o cadastro de bens do Estado de que estamos a falar, não existe e nunca foi constituído.

Estamos a meio de um filme de suspense. Mas uma coisa sabemos: há uma vítima do comportamento destes personagens, que são as populações, a quem têm sido subtraídos muitos milhões de euros ao longo de muitos anos. A impunidade não pode continuar. Segundo sei, Portugal ainda é um Estado de Direito.