Que o nosso país atravessa uma situação de seca meteorológica ninguém tem dúvidas. Como ninguém tem dúvidas de que o nível baixo de armazenamento das albufeiras tem uma relação direta com a fraca pluviosidade deste Inverno. Começar a atribuir ao encerramento das centrais de carvão a responsabilidade pela falta de água nas albufeiras já é uma outra conversa, que terá de ser suportada em factos e dados concretos.
Agora, afirmar que as centrais de carvão foram encerradas por ordem do Governo ou do Estado só pode indiciar ignorância ou malícia. A ignorância é obviamente desculpável para quem não conhece o setor.
Comecemos pelo princípio.
Na esteira do Acordo alcançado em Paris na Cimeira do Clima, com a aprovação por 195 países unidos no objetivo de conter a subida da temperatura do planeta a 1,5 graus centígrados, Portugal traçou a sua estratégia de transição para um modelo energético mais sustentável, baseado em fontes renováveis de energia e na promoção da eficiência energética. Estes compromissos ficaram materializados no Roteiro para a Neutralidade Carbónica (RNC 2050), concluído em 2019, e no Plano Nacional integrado de Energia e Clima (PNEC 2030), concluído pouco mais tarde. A substituição dos combustíveis fósseis por fontes renováveis de energia faz parte dessa estratégia, nas dimensões da sustentabilidade ambiental, da redução da dependência energética e das importações, da segurança de abastecimento, entre outras.
Mas vamos a factos. O encerramento da central de carvão de Sines, em janeiro de 2021, foi determinada por renúncia do titular, a EDP, por solicitação escrita à Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG), em julho de 2020, alegando, entre outros motivos, o facto de a produção de energia elétrica a partir do carvão ter vindo a ser sujeita a uma forte e crescente penalização dos seus encargos regulatórios, como o custo do dióxido de carbono emitido e a eliminação da isenção de ISP. Também já se verificava, desde julho de 2019, o funcionamento irregular da central, não se prevendo até à data prevista de encerramento da central, em setembro de 2023, que a mesma viesse a ser mobilizada em mercado pelo Gestor Global do Sistema. Esta foi a verdadeira razão de encerramento antecipado da central.
Quanto à central termoelétrica a carvão do Pêgo, o seu fecho é devido à cessação da vigência do Contrato de Aquisição de Energia (CAE), titulado pela Tejo Energia, a 30 de novembro de 2021. Não houve aqui, como em Sines, qualquer interferência do Estado ou do Governo, mas apenas a invocação da lei pelo produtor e o cumprimento das disposições contratuais.
Esclarecido, como espero, o enquadramento do encerramento das centrais, analisemos agora o impacto das mesmas no Sistema Elétrico Nacional (SEN).
Nos anos de 2012 a 2018, o carvão contribuiu em média com 4,85 milhões de toneladas de carvão por ano para o SEN. A partir de 2019, que foi um ano seco, essa contribuição baixou para 2,1 milhões de toneladas. Nos dois anos seguintes, 2020 e 2021, a contribuição do carvão baixou sucessivamente para 0,94 e 0,31 milhões de toneladas. Ora, isto não teve a ver com uma decisão arbitrária do Gestor Global do Sistema, mas sim ao facto de o preço da tonelada de dióxido de carbono associada à produção de carvão ter passado de 5-6 euros, em 2017, para cerca de 60 euros, no final do ano passado, penalizando a tonelada de carvão usada nas centrais e as ofertas de energia provenientes desta fonte no mercado de eletricidade.
De resto, continuamos a ter centrais de ciclo combinado a gás natural para garantir potência despachável, sendo a sua utilização ponderada, em termos de custos para o sistema e para os consumidores, por comparação com o custo da eletricidade importada. Se é verdade que a compra desta energia importada pode ter tido um custo superior a 400 milhões de euros em 2021, não existe relação direta deste custo com a disponibilidade de carvão ou com a seca. Se em 2021 tivemos um saldo importador de 4,7 TWh, com um outono e um inverno extremamente secos, em 2019, com um ano relativamente seco e ainda com carvão, tivemos um saldo importador de 3,3 TWh. O mesmo se passou em 2012, por exemplo, um ano muito seco, em que o saldo importador atingiu 7,9 TWh, muito superior ao valor do saldo de 2021 e, neste caso, com as centrais de carvão em pleno funcionamento. Cai por terra, assim, o argumento de que as importações resultam do encerramento das centrais de carvão, quando é evidente a sua ligação com a seca e a reduzida pluviosidade.
É preciso também ter em conta que o consumo de carvão a que estávamos habituados, na casa das 4,85 milhões de toneladas, e que custava ao país qualquer coisa como 300 milhões de euros por ano, custaria, a preços de hoje, quase 1000 milhões de euros, sem contar com o custo da emissão de carbono. Basta estudar alguns números disponíveis nas estatísticas publicadas pela DGEG para evitar análises simplistas e desinformativas que em nada contribuem para a coesão em torno dos objetivos para o setor energético e para o relançamento da nossa competitividade económica.
Por isso não me parece honesto que pessoas que tiveram responsabilidade no setor, e nessa qualidade, se ponham a escrever artigos sem conhecer os factos nem analisar as séries históricas, nem que seja dos últimos cinco anos! Olhar para o custo da energia importada em 2021 e não o comparar com os anos anteriores em que, em circunstâncias similares, também importámos energia, mesmo com as centrais de carvão a funcionar, é no mínimo um exercício de demagogia (e não, não tivemos longos anos de neutralidade do saldo importador: em sete dos últimos dez anos, importamos eletricidade, exportamos em dois e tivemos apenas um ano relativamente neutro, 2014).
A única vantagem do carvão reduziu-se à capacidade de colocar potência na rede para responder a desequilíbrios de oferta e procura, nomeadamente nas pontas do diagrama de carga. Esta situação está neste momento a ser compensada com importações de energia, enquanto as hídricas e as outras renováveis não conseguem responder. Mas mesmo esta situação está a ser alterada de uma forma bastante visível. Os leilões de capacidade solar lançados em 2019, 2020 e 2021, podem vir a introduzir mais de 2 GW no SEN. Já neste mês, entram em exploração as primeiras centrais solares provenientes desses procedimentos concursais. De realçar também que, em 2021, a potência instalada solar subiu 701 MW, quase três vezes o valor instalado em 2019, naquele que tinha sido o melhor ano até agora para a energia solar fotovoltaica. Finalmente, não podemos deixar de referir os acordos com os operadores de rede de transporte e de distribuição, que constituem um pipeline de projetos na ordem dos 20 GW.
Se a isto somarmos a promoção e a simplificação administrativa das soluções de otimização das infraestruturas da rede elétrica (hibridização, sobreequipamento, repowering, autoconsumo e comunidades de energia renovável), juntamente com a concretização plena da cascata do Tâmega e o reforço das infraestruturas de rede a sul do país, temos todas as razões para acreditar que estamos a construir um sistema mais resiliente, mais confiável, com menores custos e mais sustentável.