A notícia do iminente racionamento de água no Algarve, em 15% para o consumo doméstico e em 70% para a agricultura apanhou muita gente de surpresa, a outros nem tanto. O problema da falta de água no Algarve não é novidade. Desde há vários anos que a palavra racionamento é referida ou  mesmo colocada em prática, mas em pequenas doses. Mas desta vez é a sério. O risco de reduzir substancialmente a atividade agrícola, nomeadamente relacionada com os laranjais, assim como outras atividades económicas, como o turismo, é real e terá um grande impacto na economia da região. Para chegar a este ponto houve claramente erros e indecisões políticas relacionadas, por exemplo, com o planeamento do abastecimento de água, ou o seu desperdício na distribuição. A estes dois pontos juntou-se mais recentemente outro, que ajudou a desequilibrar a situação. As secas, sucessivas,  dos últimos anos, com uma relação direta com o fenómeno das alterações climáticas.

Mas não podemos esquecer que por detrás dos eleitos, que tomam as decisões políticas, estão os eleitores. Neste caso, ao longo de vários anos, eleitores e eleitos  preferiram varrer para debaixo do tapete esta ameaça, que parecia longínqua e pouco “natural”. Só que a natureza tem sempre a última palavra e empurrar com a barriga este tipo de ameaças só leva ao agravamento das suas consequências. Como se está a ver.

Muitas vezes, a preocupação com as alterações climáticas e a necessidade de implementar medidas de mitigação, assim como de transição energética é vista como uma preocupação dos mais ricos ou favorecidos. São sobretudo estes que discutem um possível “fim do mundo” (esta expressão reflete sobretudo o risco de múltiplas catástrofes de origem ambiental, que poderão  provocar uma disrupção no atual modo de vida das pessoas, como é o caso da seca extrema no Algarve) e onde é mais fácil observar mudanças comportamentais como a adesão aos automóveis elétricos e aos produtos “sustentáveis”, que hoje são habitualmente mais caros que os seus equivalentes tradicionais.

A preocupação que estes têm é claramente de longo prazo. O “fim do mundo” poderá acontecer, mas não já. Talvez daqui a muitas décadas, lá longe no futuro.

Por outro lado, os menos favorecidos têm uma preocupação muito mais premente e tangível, o fim do mês. Para estes, o que está em causa não é o futuro longínquo, mas sim o dia de amanhã. O seu foco está no acesso e no custo dos produtos e serviços necessários para o dia a dia, o que é muito mais relevante do que o impacto que estes provocam no ambiente.

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Só que, quem efetivamente mais sofre com os efeitos das alterações climáticas são os desfavorecidos. Serão seguramente estes os mais afetados pela redução da actividade agrícola e turística no Algarve. Assim como aqueles que habitam em zonas com menos procura e logo mais baratas, devido ao  pior planeamento urbanístico e deficiente acesso a transportes públicos, em zonas mais vulneráveis a cheias, ou a aluimentos de terras, ou mais ventosas, ou mais quentes, ou mais frias. Nos casos limite, em habitações construídas pelos próprios, com redes de água e eletricidade artesanais e às vezes clandestinas.  Embora os fenómenos extremos de secas, inundações, vendavais, desabamentos ou picos de temperatura possam acontecer em qualquer lugar, são aqueles que vivem nestas zonas que correm mais riscos pessoais, materiais e financeiros.

E o mesmo se passa no plano dos países. A preocupação com as alterações climáticas é visível sobretudo nos países que têm um regime de democracia liberal e um índice de desenvolvimento humano mais elevado. Estes são os países com uma população mais instruída,  uma infraestrutura pública mais bem preparada e uma administração pública mais competente. Deste lado da barricada juntam-se também alguns  países mais pobres  que já têm a percepção de que serão gravemente afetados, como é o caso dos países-ilha do Oceano Pacifico, que poderão ter o mesmo destino da mítica Atlântida.

São efetivamente  os países mais pobres, a maior parte deles com regimes autoritários ou democracias liberais frágeis aqueles que poderão ser mais afetados pelas alterações climáticas. São estes países que mais sofrem com secas prolongadas,  inundações catastróficas e picos de temperatura que provocam quedas abruptas na produção agrícola  e pecuária, ou na atividade turística. É a população destes países que corre um maior risco de ser vítima da fome, de epidemias,  instabilidade política resolvida pela força das armas e migrações massivas, que por sua vez podem desestabilizar os países de acolhimento. Infelizmente, em muitos destes países, a vida humana vale pouco, muita da infraestrutura pública está decadente ou largamente subdimensionada e a administração pública é disfuncional ou corrupta.

Acresce que existe uma dissonância na percepção deste tema entre o meio académico / científico e a população em geral. No primeiro caso é dominante a aceitação  da existência de uma causa-efeito entre emissões de gases de efeito estufa, o destrambelhamento climático e as cada vez maiores e mais frequentes catástrofes relacionadas com a meteorologia. Esta aceitação não tem origem numa religião, ou numa dada universidade, ou numa dada empresa, ou num dado país. Esta aceitação baseia-se em dados científicos discutidos e validados entre milhares de atores científicos dos mais variados países, instituições e empresas. Esta discussão envolve os vários níveis de soberania. Dos governos centrais às câmaras municipais, milhares de universidades e múltiplos setores industriais por esse mundo fora. Já agora, as principais religiões do Planeta juntam-se na aceitação desta causa-efeito, como é o caso da Igreja Catolica, com a Exortação Apostólica, Laudate Deum, a Declaração do mundo Islâmico, a Declaração de Lambeth, dos Anglicanos, e nos textos do Rabbi Sacks.

Na população em geral não é assim. Uma parte da população não acredita nesta causa-efeito e portanto não vê interesse em concretizar as medidas de adaptação e mitigação, nos mais diversos planos.

O negacionismo climático, beneficia sobretudo aqueles que têm todo o interesse em manter o atual status quo, de continuar a viver da venda ou consumo de combustíveis fósseis. Estes têm todo o interesse em desacreditar, sem qualquer robustez científica, o fator de causa-efeito entre emissões de gases de efeito estufa e o destrambelhamento climático. Tal e qual como aconteceu décadas atrás com os fabricantes de cigarros que, depois de se tornarem evidentes os reais malefícios do tabaco para a saúde pública, fizeram os possíveis por desacreditar totalmente a causa-efeito entre o ato de fumar e as consequências nefastas para a saúde e qualidade de vida dos fumadores

Compreensivelmente, as pessoas mais vulneráveis a este tipo de argumentos são aqueles que estão mais preocupados com o fim do mês do que com o “fim do mundo”. E sabendo que à data de hoje a palavra “sustentável” normalmente significa “mais caro” é natural que estas pessoas prefiram o status quo. A preocupação dos ricos com o “fim do mundo”  pode, de facto, dificultar o fim do mês dos mais pobres.

Ora, numa democracia liberal, quem decide as políticas públicas são os eleitores, os ricos e os pobres. E se a maioria dos eleitores não vir benefícios em mudar de hábitos irá, com toda a legitimidade, preferir o status quo.

Voltando ao caso do Algarve, é muito provável que, até aqui, as medidas certas para evitar chegar à situação presente não tenham sido devidamente valorizadas pelos eleitores. Para os políticos, insistir neste tema poderia não ser a melhor maneira de ganhar as eleições seguintes. Nesse caso, então, para quê preocupar-se com um problema de longo prazo, quando os eleitores valorizam a resolução dos seus problemas mais imediatos?

Mark Carney, canadiano, que foi Governador do Banco do Canadá e depois, sem mudar de nacionalidade, do Banco da Inglaterra, ilustrou muito bem o dilema que afeta eleitores e  políticos naquilo que ele chamou The tragedy of the horizon. De forma muito sumária, ele constata que o fenómeno das alterações climáticas têm um desenvolvimento inexorável, porém lento. Demasiado lento para ser percepcionado, sem ambiguidades, pelos eleitores. Demasiado lento para o horizonte temporal dos decisores políticos, das autoridades tecnocráticas e dos decisores empresariais.  Nenhum destes grupos tem incentivos para sair da sua zona de conforto por causa de uma realidade que só será sentida, sem ambiguidades, pela população muito tempo depois de eles partirem. Em resumo, a geração atual não tem incentivos para mitigar problemas e custos que só serão sentidos nas gerações seguintes. Mas por outro lado, começar a agir quando deixar de existir essa ambiguidade será tarde demais e nessa altura os políticos terão falhado no seu dever de proteger as suas populações. É o que está a acontecer no Algarve.

Precisamos de políticos informados e corajosos, que tomem as medidas necessárias para proteger os seus eleitores, os presentes e os futuros. Porém, essas medidas têm que atender as necessidades e os problemas dos mais desfavorecidos permitindo que as várias transições em curso tenham um impacto positivo nas suas vidas. Por exemplo, reduzindo ou eliminando o flagelo da pobreza energética, visível em Portugal nesta altura do ano, cuidando de evitar disrupções que podem custar centenas ou milhares de postos de trabalho e em vez disso somar muitos novos postos de trabalho. Só assim será possível garantir o apoio eleitoral necessário para prosseguir a transição energética, necessária para proteger as gerações futuras das alterações climáticas.